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A que serve Nora?

Nelson Matheus Silva

Comecei me questionando se seria Nora um sinthoma para Joyce. Em caso de negativa, qual seria então sua função para ele. Que sua presença física tinha um efeito sobre ele, acredito que não há dúvidas sobre esse ponto. Assim, inicio.

Escrever a relação sexual é uma ilusão, uma miragem, que pode se dar no instante de um encontro[1]. Uma ilusão uma vez que a contingência flui, de imediato, para a necessidade, afastando aquilo que podemos chamar de amor do encontro que o fez nascer. Não é disso, porém, o que se trata na parceria de Joyce e Nora.

Na aula em que Lacan se interroga se Joyce era louco, ele vai também levantar algumas questões sobre a parceria deste último com Nora, sua esposa. “Direi, [que essa parceria é] coisa singular, que é uma relação sexual, ainda que eu diga que não há relação sexual. Mas é uma relação sexual bem esquisita.”[2]

Bem. Se algo nos cai como uma luva, não podemos dispensar a ideia que tal expressão, tão comum na vida cotidiana, aponta para o que se faz oportuno, justo ali. Então, dizer, portanto, que Nora é para Joyce como uma luva, como Lacan o disse, uma luva virada ao avesso, isto é, que lhe cai bem tanto no direito como no esquerdo, nos orienta a supor o lugar de consistência que era Nora para ele, ao mesmo tempo em que marca um certo escamotear da diferença sexual[3]. Nesse ponto, vale ressaltar que mais do que cair como uma luva, o importante mesmo é que Nora se ajusta, se assujeita a ele, dá seu contorno.

Afirmar isso, porém, é afirmar que teria sido Nora um sinthoma para Joyce? “Você se tornou uma parte de mim, uma só carne”[4], diz Joyce à sua esposa. “Barnacle”, sobrenome de Nora, tem um duplo sentido, e evoca também um gancho, ponto esse que não passou despercebido para o pai de Joyce, que diz ao filho que essa nunca o abandonará.

Para que uma mulher seja um sintoma para um homem, é preciso que ela seja uma-dentre-outras. Tal condição se dá por meio de um polo de tensão pelo qual essa mulher pertence de alguma forma a um outro homem. Nora era o único modelo para Joyce, só havia ela para ele. Num momento em que Nora se ausenta, Joyce se desestabiliza. Ele delira e a acusa de infidelidade, escreve-lhe cartas ofensivas e só se acalma quando um antigo amigo afirma para ele que um tal ponto relacionado à infidelidade de Nora era uma “enorme mentira”. Nora é parte, tem participação, naquilo que Joyce estava inventando: sua escrita.

A partir daí, pensei em algum momento em que Nora pode ser equiparada, em sua função, a um analista como parceiro-sinthoma, que se instala na transferência como “complemento” do sintoma de alguém. No Seminário 23, quando interrogam Lacan perguntando se a psicanálise seria um sinthoma, ele não vacila em responder: “não é a psicanálise que é o sinthoma, mas o psicanalista”[5].

Nora, como parceira-sinthoma de Joyce, advém como “complemento” de seu sintoma, seu ego, Joyce. Ela possibilita que as partes dispersas de seu corpo tenham um contorno, um enganche, como possibilita também que haja uma localização de seu gozo. Não servir para nada não quer dizer que Nora seja dispensável para ele, ao contrário, é em sua função de sujeição, de se moldar absolutamente ao gozo de Joyce, contendo seus excessos, que ela se faz fundamental.


[1] NAVEAU, Pierre. O encontro – Do Impossível ao contingente. In: NAVEAU, Pierre. O que do encontro se escreve: estudos lacanianos. Belo Horizonte: EBP Editora, 2017. p. 260.
[2] LACAN, Jacques. O seminário, livro 23: O sinthoma. (1975-1976). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. p. 81.
[3] ARPIN, Dalila. Parejas célebres: lazos inconscientes. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2018.
[4] Ibidem, p. 128.
[5] LACAN, 2007/1975-1976, op. cit., p. 131.

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