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A Aposta Masculina

Rosa López
Psicanalista em Madrid. AME da Associação Mundial de Psicanálise e da Escuela Lacaniana de Psicoanálisis. Ensinante do Instituto del Campo Freudiano.

Oh, esse feminino obscuro que passa e parte e que jamais será tocado – se desvaneceria se se tocasse, já que seu encanto reside em ser desconhecido e intocável. (Rémy de Gourmont)

Notemos que o autor não se refere às mulheres em geral, nem sequer a uma mulher em concreto, senão ao obscuro, por irrepresentável do feminino. Por mais que se tente, a “essência” do feminino não se pode tocar porque não existe. Nem o entediado Rajá de Alphonse Allais, que ordena que a pele da bailarina seja tirada depois da queda do último véu, nem o homem que leva seus ciúmes até o homicídio conseguem apreender “esse feminino” que “passa e parte”.

Reduzindo muito as nuances, podemos dizer que, para o homem, uma mulher pode ter um valor duplo:

  1. Encarna o objeto de desejo (a) com o qual seu fantasma se acomoda,
  2. Assume o caráter enigmático (em ocasiões angustiantes) do feminino.

Diante do encontro com uma mulher, o homem terá que eleger em que terreno quer jogar a partida.

  1. A comodidade proporcionada pelo fantasma com que organiza seu mundo familiar tem um reverso/lado mortificante do desejo, como nos ilustra o romance do escritor húngaro Sándor Márai intitulado La extraña[1], no qual o protagonista expressa o paradoxo da vida conjugal com uma fórmula muito atinada: “Ali onde desaparece o mistério, começa o pudor”. Efetivamente, quanto menos estranho é o parceiro, quanto mais o conhece, maior é a vergonha ligada ao sexo. Ele recorda do quanto havia amado sua esposa, assim como o que chegaram a fazer no quarto quando ainda eram dois desconhecidos, mas isso se perdeu irremediavelmente, pois, “com alguém que sabe tudo sobre o outro, não se pode fazer coisas assim”.

Esta frase me lembrou imediatamente daquela outra que encerra o Seminário Mais, ainda: “saber o que o parceiro vai fazer não é prova de amor”[2]. Se a alteridade é completamente perdida, o encontro sexual se converte em uma rotina, se não uma obrigação. Alguns lamentam o esforço que fazem para cumprir com a dívida conjugal para evitar que ela vá buscar a satisfação em outra parte. Não sabem que nesse campo não há forma de cumprir sem pagar um preço, o de sua impotência quando surge a ocasião ou de ódio em vez de amor. A estabilidade do casal pode apagar a verdadeira diferença sexual que não é a de ter ou não ter o falo, mas de sustentar o gozo do parceiro como alteridade.

Vejamos a segunda opção.

  1. Quando o que está em jogo é uma mulher em seu estatuto de enigma, não há acomodação, mas sim uma atração inquietante, e essa fascinação angustiante que representa passar pela prova da impotência da verdade diante do real do gozo.

No encontro com a alteridade de uma mulher, o homem não pode sair por cima se cifra sua aposta no que tem (falo, prestígio, dinheiro). Tampouco lhe servirá o uso da rotina do significante com o qual ela se decepcionará se não for acompanhada de um “dizer” (enunciação) que fale sem saber com o corpo, dando o que não tem no seu sintoma. Só assim conseguirá “pegá-la de uma boa maneira”[3].

O personagem masculino, criado por Sándor Márai, abandona sua esposa e inicia uma saída vagabunda ao mundo em busca d’A estranha. Chegando a um ponto sem retorno, transforma-se em uma espécie de Aquiles fugitivo em sua louca intenção para alcançar a tartaruga. Não quero revelar o dramático desfecho desse romance, apenas mencionar que, nessa aposta por ter o impossível, alguns homens não conseguem frear até perder tudo.


[1] MÁRAI, S. La extraña. Madrid: Salamandra, 2010.
[2] LACAN, J. O seminário, livro 20: Mais, ainda. (1972-1973) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., ano. p. xx.
[3] LACAN, J. O seminário, livro 16: De um Outro ao outro. (1968-1969) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., ano. p. xx.

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