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A bela e a fera

Rogério Barros[1]

O célebre casal Arthur Miller e Marilyn Monroe, nomeado “a bela e a fera”, ressoa o conto francês de Beaumont e Villeneuve[2], em que uma camponesa, humilde e dócil, é aprisionada pela Fera como objeto de troca para salvar o pai. Aos poucos, encontra o despertar do amor na figura feia e agressiva da Fera, aceitando desposá-lo, o que, magicamente, faz dele um príncipe. A entrada do amor causa todo o plot twist da trama.

Podemos dizer, tal qual Lacan mesmo dá relevo em O avesso da psicanálise, que a entrada do amor permite a passagem a um novo discurso[3]. É a partir do amor, daquilo que dele se faz rasura, ranhura, que algo se escreve, fazendo assim, da inscrição do impossível, um laço entre os seres falantes[4]. É daquilo que cessa de se escrever da contingência de um encontro amoroso que os falantes, com os signos de amor, fazem laços inconscientes, encontrando aí uma miragem, ilusão de que a relação sexual possa existir[5].

É bem verdade que a bela Monroe, referência dA mulher em escala planetária, não é de todo dócil. Tampouco há, em Monroe, uma tentativa de salvar o pai. Como aponta Arpin, em sua hipótese de psicose, Marilyn paga com sua carne o empuxo em fazer-se A mulher, a exceção, dando consistência imaginária ao corpo através da construção frágil mediada pelo olhar do outro[6]. Corpo que cai a todo instante, já que a crença em o ter não apresenta êxito, uma estabilização duradoura. Órfã, com parca inscrição do desejo sobre ela no começo da sua história, Monroe encontra, do vazio que ela habita, a forma de um corpo ao perceber-se olhada, fabricando umA mulher, fundada em um jeito de corpo e andar que marca a história do cinema.

Se quando do anúncio do casamento de Monroe com Miller encontramos a frase “a cabeça encontra o corpo”, antevimos que é justamente esse corpo que Monroe tenta atar. Em uma entrevista, Marilyn relata que Miller, ao conhecê-la, a viu chorando e disse: “Ele viu em mim humanidade”. Da ambição loira da mulher fatal e voluptuosa, a fragilidade do exílio do ser falante poetizado num encontro.

Miller, intelectual e dramaturgo americano, que também apresenta em sua história, relatada em sua biografia, o sentimento de abandono e isolamento, fala que, ao encontrá-la, percebe “O choque de sentir a corrente elétrica, uma sensação tão incoerente com a evidente tristeza de Marilyn em meio ao glamour do lugar, à tecnologia e à confusão de uma nova cena sendo filmada…”[7]. Para além da imagem um tanto vulgarizada para a década de 1950, apreende-se nela uma fragilidade que se converte em necessidade de salvar a mulher.

Afinal, como pensar o instante de ver decorrente da contingência do encontro entre Marilyn e Miller? O que cessa de se escrever da contingência, miragem, ilusão da relação sexual, ao necessário que comanda todo o drama do amor, como aquilo que não cessa de se escrever? Se há Uns, não dois, podemos dizer que há aí dois encontros, duas contingências, duas inscrições: não há relação sexual.

Foi pautado nesse enigma que encontramos os pontos cardeais dessa parceria, que vai do contingente do encontro ao necessário do drama do amor. Abordagens que tocam a ética do encontro, a admiração entre o enigma e a perversão, a câmara vazia da frágil sustentação no olhar e a questão sobre o saber e o amor, dão as veredas das questões que nos orientam pensar este encontro célebre e do seu fracasso.


[1] Membro da EBP/AMP. Diretor Geral do IPB.
[2] BEAUMONT, Jeanne-Marie Leprince de; VILLENEUVE, Gabrielle-Suzanne Barbot de. A Bela e a Fera. Trad. André Telles. Prefácio de Rodrigo Lacerda. São Paulo: Jorge Zahar Ed., 2016. 238p.
[3] LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. (1969-1970) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
[4] LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: Mais, ainda. (1972-1973) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1982.
[5] NAVEAU, Pierre. Encontro: do impossível ao contingente. In: NAVEAU, Pierre. O que do encontro se escreve. Belo Horizonte: EBP, 2017. p. 247-278.
[6] ARPIN, Dalila. Parejas célebres: lazos inconscientes. Buenos Aires: Grama, 2018.
[7] DIRAMI, Victor. Marilyn Monroe & Arthur Miller: felizes para sempre ou até que a morte os separe. Obvious, 2003. Disponível em: http://obviousmag.org/archives/2014/04/marilyn_arthur_felizes_para_sempre_ou_ate_que_a_mo.html. Acesso em: 19 set. 2022.

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