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O Saber depois do frame

Saulo Machado Cunha

Parto da provocação de Lacan acerca do encontro amoroso, a saber, a de que, um dia, ao acaso, os enamorados não desejaram não saber demais. A pergunta que se impôs após as discussões no cartel – a respeito do meu querer “saber demais” – foi a de investigar de que tipo de saber estamos falando, quando do momento do encontro, na relação amorosa. Isso exige alguns apontamentos acerca da linguagem, do ser falante e do corpo. A linguagem é feita de alíngua, diz Lacan, e todo o trabalho dela é a tentativa de produzir um saber sobre os efeitos de alíngua, quais sejam, os afetos[1]. Produzir um saber sobre esses efeitos nos leva a uma definição de saber primeiro como enigma, depois como aquilo que se articula (S1, S2…)[2]. No entanto, de que saber se trata, no instante do encontro amoroso, se tomarmos como premissa base a ideia de que, no apaixonamento, a relação sexual para de não se escrever?

A indicação de Lacan é a de que a relação sexual para de não se escrever somente pela via de uma miragem. Podemos dizer também: de uma imagem. É pela via do frame que se dá a tal da “paixão fulgurante”[3]. Mas não é somente pela captura imaginária que nos apaixonamos. A primeira vez que Arthur Miller avista Marilyn Monroe, ela está no centro das atenções de uma festa, quando ainda não era famosa. Arthur Miller diz que ela “parecia ridiculamente provocativa, porque seu vestido estava grudado de uma forma descarada”[4]. Esse é o frame de Miller, o imprinting, a cena que o capturou mas que, segundo Vieira[5], não se esgota em si mesma: é preciso qualquer coisa que se articule de a mais. É para o que Arpin parece nos apontar quando aproxima a história de orfandade do pai de Miller à de Marylin, indagando se não se tratava, para Miller, de “sustentar o pai através da figura de A Mulher”[6]. Assim, o que se articulou para além da imagem de Marilyn no centro das atenções com um vestido colado no corpo – imagem nada original, diga-se – foi, no dizer do próprio Miller, “algo semelhante a uma esperança” que havia “articulado algo secreto”[7]. Junto a Lacan, podemos dizer que este “algo secreto” enunciado pelo dramaturgo é o “afeto que resta enigmático”[8] que se articula como presença de alíngua, fazendo referência ao saber inconsciente, sempre mais além do que pode ser dito.

Temos então que o saber em jogo no instante do encontro amoroso coaduna uma imagem um tanto genérica que, todavia, remete à opacidade própria de um saber sobre alíngua, sendo esta o en-carne, no parceiro, dos afetos, sintomas e da marca do exílio da relação sexual[9]. Nesse sentido, o saber do encontro é aquilo que se articula não como cadeia de significantes, mas por aquilo que, sendo efeito de alíngua, o significante é convocado a fazer signo[10]. A paixão adquire sua “fulgurância” pelo encontro do que aquilo, no outro, lhe pontua como S1, como traço, e que lhe faz sujeito.


[1] LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: Mais, ainda. (1972-1973) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. p. 190.
[2] Ibidem, p. 188.
[3] VIEIRA, 2010, p. 1. Paixões em análise. In: amor e ignorância. Curso livre do ICP-RJ, ministrado na Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Rio, 29 de julho de 2010. Transcrição, edição inicial e pesquisa de referências por Anna Luiza Almeida e Silva.
[4] MILLER, 2010 apud ARPIN, Dalila. Parejas célebres: lazos inconscientes. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2018. p. 82.
[5] VIEIRA, 2010, op. cit., p. 2.
[6] ARPIN, 2018, op. cit., p. 83.
[7] MILLER, 2010 apud ARPIN, 2018, op. cit., p. 83.
[8] LACAN, 1985, op. cit., p. 190.
[9] Ibidem, p. 198.
[10] Ibidem, p. 195.

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