Marcelo Magnelli
Foi em “um dia de verão de 1904″ que se deu O encontro. James Augustine Aloysius Joyce, 22 anos, flanava por Dublin quando percebeu uma jovem com caminhar elegante. Com seu olho míope, “pára suas orelhas” em Nora Barnacle a partir do grande desembaraço como ela o respondeu, permitindo a continuidade da conversa.
Algo nesse encontro toca o mais íntimo de Joyce. Na contingência, algo do Um do gozo, que não cessa de não se escrever, no espaço de um instante, cessa de não se escrever. A cessação da não escritura da não-relação sexual parece fazer inscrever – faz crer – que ela existe. A fantasmática neurótica aponta para essa crença, apagando o efeito de acontecimento de corpo. Com isso, o neurótico “adormece” na história de amor, consumindo o próprio do amor. Esse “próprio” é o exílio do falasser: do impossível de fazer dois do Um. Por isso, cada amor é sempre singular[1].
O encontro de Joyce e Nora não foi do tipo neurótico. Permaneceu o enigma da enunciação que ele não conseguia elucidar. O exílio permanece[2]. Entendo que Lacan aponta para esse exílio quando nos diz que Nora “não serve [sert] para nada, salvo que o ajusta [serre]”. Ou seja, ali onde o falo simbólico não está em jogo, não se trata do valor de significação[3]. Por isso, parece-me que essa parceria não se tenha tornado da ordem da necessidade (não cessa de se escrever).
Diante da verwerfung original, a carência paterna em Joyce o convocou a tornar-se o artífice que deverá forjar a consciência incriada de sua raça. Ou seja, Joyce é o artesão que cria, sob medida, artifícios para estar no mundo, assim como Dedalus[4] criou as asas para ele e seu filho Ícaro fugirem da ilha de Creta. A identificação aos ideais jesuítas parece-me o artifício inicial: estabilizador em sua infância, cai por terra com a irrupção do gozo corporal na adolescência. Joyce é acusado de ser um herege, tal como Byron, na cena da surra, na Rua do Jones. Com a queda do santo, tenta erigir outro artifício: um “quebra-mar de ordem e elegância”, e o autocontrole corporal, mas a “maré sórdida da vida” e seus “tumultos orgíacos” ultrapassam as barragens. Com isso, surgem desestabilizações com insônia, desarticulação de ideias e palavras impostas. As caminhadas erráticas pela cidade (como conheceu Nora) são tentativas de tratamento dessas desestabilizações. As epifanias também ocorrem nesses passeios, efeito de interpenetração entre Real e Simbólico e são da ordem do necessário. O artista seguirá por uma via herética e comportará uma Estética própria para constituir o EGO como um artifício, ao invés de um corpo[5].
Nora, para Joyce, parece-me mais um desses artifícios para tentar manter unidos Real, Simbólico e Imaginário. Sua parceria extraordinária o mantém ordinariamente estabilizado e é comparável, em sua efetividade, apenas à sua escrita.
Lacan destaca que Nora é, para Joyce, “uma luva virada ao avesso. Com isso, demonstra o efeito de servir perfeitamente, ajustando o corpo de Joyce ao abraço de Nora. Uma luva, destaquemos, pode ser utilizada em uma mão e, se colocada ao avesso, na outra. Finalmente, na palavra luva, em inglês, se intromete a palavra amor: (g)love.[6]
Fabián Schejtman, em seu livro Philip Dick con Jacques Lacan, busca comparar A Noraluva-sinthome com as “mulheres-alma” de Philip Dick, destacando a diferença de enodamento em jogo, o que justificaria, inclusive, o fato de Nora ser única para Joyce[7].
O EGO não toca o real do imaginário corporal, mas apenas o Real em sua relação com o Simbólico. A proposta de Noraluva-sinthome de Schejtman se apresenta como um segundo enodamento sinthomático (porque repara no exato local do lapso do nó), em relação com o EGO. Um nó em formato de orelha que modela e ajusta o enodamento do EGO com o real do imaginário corporal. Nora é insubstituível porque não há outra que se encaixe no sinthoma de Joyce como ela.