Graziela Vasconcelos[1]
Se homens e mulheres se constituem de modos distintos, seguindo Freud, isso se dá em razão da relação que cada um tem com o falo, por consequência, com a noção de castração, ou seja, com a ordem simbólica. Isso já nos permite entrever que há algo de um não encontro entre o ser homem e o ser mulher. Lacan, ao avançar, irá nos dizer que essas posições são efeitos de linguagem e que, como em cada sujeito a linguagem incide de um modo, as fantasias e os modos de gozo são também distintos. Portanto, não haveria entre Um e Outro a possibilidade de um encontro, mas, precisamente, há encontro e o que não cessa de não se escrever, contingencial e ilusoriamente, cessa de não se escrever e assim se inscreve.
As parcerias, os laços que portam os traços do inconsciente, são materiais carregados de complexidade e de difícil elucidação. O que fazer quando há tanto a ser dito, a ser escrito e não há espaço o bastante para comportar algo de tamanha grandeza? Como articular, enodar, (entre)laçar, tramar, amar em um espaço tão exíguo que poderia se chamar instante? Ocorre que é apenas no espaço/tempo de um lapso que tudo pode ser dito, ainda que o dizer que lhe vai por detrás escondido não possa, na maioria dos casos, ser lido. Um encontro, sintomas e afetos pronunciados sem palavras e uma parceria improvável se faz.
De um lado, Nora Barnacle, nomeada “assassina de homens”, mulher simples, provinciana, rude, nada intelectual, mas não por isso diria dela acessível, dependente e submissa. Do outro, ele, James Joyce, um escritor, errático, herege, obsceno. Fez o próprio nome, ou o nome próprio, o Ego, por meio de sua escrita, mas ainda assim claudica, há algo de uma soltura do imaginário que precisa ser reparada. Nora encontra nele aquele que não morre de amores por ela, ao contrário, faz dela objeto dejeto, deprecia-a, mas sem jamais poder prescindir de sua presença, de sua existência. Joyce encontra nela a diferença, talvez a queda da mulher ideal; ao invés de uma idealização, nos termos do amor cortês, uma crueza de um gozo não velado, mas precisamente nela e por meio dela localizado. Mas Nora é muito mais e faz função de sinthoma no enodamento de Joyce. É ela que, como uma luva ao avesso, pode cerrar, ajustar, dar consistência a esse corpo, ao real do corpo, o real no imaginário que o Ego-sinthoma não repara.
Sobre essa parceria, improvável, Lacan vai nos dizer que se trata mesmo de uma relação sexual, ainda que tenha sido ele mesmo a enunciar que a relação sexual não existe. É que Joyce parece crer e convoca Nora a uma posição de fazer o impossível da relação sexual existir. De que forma Joyce nos aponta sua crença nessa existência? Sem percorrer o longo percurso necessário a tal elucidação teórica, recorro às cartas por ele escritas a Nora, que nos dão algumas coordenadas. “Em breve meu corpo vai penetrar no teu, oxalá minha alma o pudesse também! […] ser alimentado com teu sangue, dormir na quente penumbra secreta de teu corpo!”; “Puxa vida, Nora, precisas procurar corresponder à tua reputação e deixar de ser a garota curiosa de Galway que és para te tornares uma mulher completa feliz e amorosa.”; “Enfeita teu corpo para mim, caríssima. […] Lembras dos três adjetivos que usei em Os Mortos falando sobre seu corpo. São estes: ‘musical e estranho e perfumado.”
Joyce faz existir a relação sexual ao construir o corpo de Nora como a uma obra, quando manifesta uma ilusão de fusão do seu corpo com o dela, de dois um só se faz. Mas apesar de ser convocada a uma comunhão plena com o corpo de Joyce, há em Nora algo que escapa irremediavelmente a ele. Nora é não toda para seu homem e ao mesmo tempo é a única, nos termos de Lacan, “uma relação sexual bem esquisita”.