Em tempos de arranjos extravagantes e corpos cada vez mais ausentes, que lugar tem o amor? Se a relação sexual não pode se escrever, o amor ao menos pode vir supri-la? Jacques Lacan esclarece que o amor permite inscrever o gozo na parceria amorosa. O encontro é um instante, um lapso em que UM se percebe fisgado por outro UM. Na arte de André Breton, temos a presença de um feminino silencioso e misterioso. Há um encantamento na mulher que se apresenta como um mistério e no silêncio. Como se houvesse um traço de luz, um traço que fisga, que causa, alguma coisa que não se sabe.
O que é esse encontro? O que sustenta as parcerias amorosas? No inconsciente, não sabemos o que mantém o laço amoroso. Não sabemos o que amamos no Outro. Nessa direção, interessa-nos interrogar sobre a parceria do pintor Salvador Dalí e Gala. Que indicações ela nos fornece sobre a experiência desse Outro gozo indistinguível que se chama amor?
As parcerias sintomáticas são uma chave para entender algo do falasser. E vamos ver isso no enlaçamento entre Salvador e Gala Dalí. Gala foi sua única mulher na vida amorosa e sexual. Ela foi o epicentro da vida dele, de modo que toda a sua obra se ordena ao redor dela. Foi um amor à primeira vista para ambos.
Nesse encontro, ela se depara com um jovem extremamente alto, um menino desamparado que, paradoxalmente, lhe transmite a sensação de estar protegida. Nesse momento em que se conhecem, Dalí não é o célebre pintor, ainda. Gala sabia descobrir os gênios ainda brotando. Foi assim com Paul Éluard – seu primeiro marido, poeta francês – e depois com Salvador. De fato, os melhores trabalhos de Dalí surgem após sua relação com Gala.
Russa de origem, era uma mulher culta, dez anos mais velha que Dalí, mãe da pequena Cécile, casada com Éluard e com constantes amantes. Essa paixão por Dalí fez com que abandonasse sua vida de então e seguisse sendo a única mulher de um único homem.
Gala é uma mulher de humor instável, que se deprime e se angustia. É sombria, imprevisível, enigmática. É sonhadora e ambiciosa. O amor se revela para ela como remédio contra suas tendências depressivas. Ela diz: “para mim, o essencial é o amor. É o centro de gravidade de minha vitalidade e do meu cérebro […]”[2] e também revelava ter um pânico da separação. Essa angústia de abandono a perseguiu desde muito cedo.
Isso faz com que tenha um fervor quase religioso por seu homem. Essa exaltação já estava presente em seu primeiro marido. Isso dava segurança a ele e em troca ela recebia sua proteção. Com Dalí, essa devoção alcança seu ponto culminante.
Ela se converte na representante, assessora e modelo de Dalí. Fica do seu lado enquanto pinta, lendo em voz alta ou simplesmente lhe fazendo companhia. Sem emitir palavras, também está com ele durante as entrevistas que concede. “Amo apaixonadamente ser dominado por Gala.”[3] Ele se declara cem por cento fiel a ela.
Gala não consegue ser uma mãe para sua filha, mas o é para seus maridos. É justamente esse aspecto maternal que atrai Salvador. Ele gostava de dizer que encontrou nela a substituta perfeita de seus amores edípicos.
No primeiro encontro sexual dos dois. Salvador se unta com uma mistura líquida preparada por ele mesmo a partir de excrementos de cabra e sangue. Ele acha que é o mais poderoso afrodisíaco que pode conceber. Dali se manteve virgem até conhecer Gala, aos 25 anos. Até então, não conhecia o ato sexual, que lhe parecia uma grande violência. Ele tinha medo de mulheres e de relações íntimas, ao ponto de dizerem que Gala era a única mulher que podia tocá-lo.
Os oito anos de análise permitem que Dalí associe sua dimensão sintomática – exibicionismo, hábitos extravagantes, bigodes inimitáveis – às coordenadas de sua chegada ao mundo. Seu irmão, nascido três anos antes dele e chamado de Salvador Galo, em homenagem a seu avô paterno – afetado de paranoia –, morre de uma complicação gastroenterítica. Salvador se refere a ele deste modo: “meu irmão foi um primeiro ensaio de mim mesmo.” Ele constata que o fantasma do irmão morto sempre o atormentou, sempre o considerou um competidor: “meus pais sempre falaram do outro e eu sempre tive que mostrar que estava vivo.”[4]
Seria Dalí assombrado pelo fantasma de uma mãe louva-deus (que teria chupado e devorado seu pênis) e, em decorrência disso, pela prática da masturbação? O fato é que Gala se decepcionou rapidamente devido à sua preferência pela masturbação em detrimento do ato sexual. Isso a conduziu a buscar compensação com outros homens. Já mais velha, insinuou-se, inclusive, para o filho de seu antigo amante, que a rechaçou.
Mas isso não foi motivo para a separação desse casal. Eles viviam em simbiose, Gala trata Dalí como uma parte de si mesma. Volta toda sua energia em mimá-lo e protegê-lo. Vela especialmente por sua concentração como artista.
Dalí anda sempre exuberante, com, por exemplo, cabelo enorme, gravata desproporcionalmente grande e uma capa que ia até os pés. E Gala, sempre em segundo plano, em silêncio, na sombra. Ele extrai dela sua força para existir e a chama de seu “anjo do equilíbrio”[5]. Dalí não tem desejo de ter filhos, quer permanecer como o filho-rei. E quanto mais idealiza Gala, mais perde erotismo em sua relação. Venera-a em posição de uma mãe ideal.
A morte de Gala, sete anos antes da sua, coloca o artista em uma profunda depressão. O seu analista classifica esse quadro como um paralelismo com os bebês que, brutalmente separados de sua mãe, se deixam morrer de desesperança. Dalí ficou profundamente deprimido e desorientado, perdendo toda a vontade de viver. Recusava-se a comer, ficando desidratado; teve de ser alimentado por uma sonda nasal.
Em 23 de janeiro de 1989, enquanto assistia à sua gravação favorita de Tristão e Isolda, morreu de insuficiência cardíaca em Figueres, com 84 anos.
O que essa parceria improvável entre Salvador Dalí e Gala nos sinaliza sobre o amor? Se, no âmago da parceria, está o muro da não relação sexual, como se estabelece o laço amoroso? A função do parceiro é proporcionar essa contingência de sair do autoerotismo, de sair dessa coisa gozosa de si mesmo, para dirigir-se ao outro.
No (des)encontro amoroso entre os sexos, eventualmente, pode se escrever a dimensão do amor. No que se pode cernir desse encontro que requer coragem: de um lado, o parceiro na forma de seu fetiche, em que o Outro se reduz ao objeto a; do outro, o enigmático, o amor enodado no nível significante, na demanda de amor. O modo como, para cada um, se articula o desejo, o gozo e o amor é sempre singular. O amor não passa por nenhuma norma ou normalidade e depende do acaso. Depende, portanto, de um encontro contingente “dos sintomas, dos afetos, de tudo que em cada um marca o traço do seu exílio, não como sujeito, mas como falante, do seu exílio da relação sexual”[7]. Cada vez que se crê estabelecer uma relação sexual, que você e seu parceiro fazem um, trata-se sempre de uma relação sintomática.
Diante do irredutível da não relação entre os sexos, a parceria é sempre sintomática. Por isso, toda essa “confusão”, são duas línguas, há o muro da linguagem aí na relação com o outro, o outro que é sempre Outro. Independente de em qual posição você está, frente à posição fálica, na relação amorosa, na parceria com o outro, tem sempre um em uma posição e o outro na outra. Mesmo que eventualmente se transite aí. Aí se encontra a dimensão do impossível da relação sexual, a não relação sexual, não cessa de não se escrever.
Necessário é, para cada um, o que não cessa de se escrever do sintoma. E se constatamos o particular do sintoma, ele a cada vez nos remete à não relação sexual, contingente, do cessa de não se escrever; é o encontro com o gozo, no amor.
Assim, para concluir, retornamos à nossa pergunta inicial: o que se escreve no encontro amoroso? O que do encontro de Salvador e Gala se escreve? Para responder, o presente trabalho teve como horizonte o que foi posto por Lacan[8] de que “falar de amor é, em si mesmo, um gozo”. O encontro de dois saberes inconscientes que sustenta o amor implica em um saber sob o pano de fundo de uma opacidade sexual[9]. Assim, o que se escreve é sempre contingente e implica o real do corpo.
Gala não produz um enigma à Dalí – ela encarna a própria mensagem, encarna a chave dos mistérios de sua existência. Dalí assim, cria Deus-mulher. “Fazendo existir A mulher na pessoa de Gala, Dalí dá ao mesmo tempo consistência a um Outro que pode obter em troca a consistência que lhe falta.” Gala, por sua vez, em sua posição materna, se utiliza dos equivalentes fálicos para nomear seu ser de mulher e nutre em seu futuro gênio, fazendo dele um artista mundialmente reconhecido. Assim, a parceria se instala em que cada um é o criador do outro. Para finalizar, gostaríamos de lançar algumas perguntas para discussão e que ressoam em nosso cartel: seriam as obras de Dalí o que se escreve da relação dele com Gala? Ele se serve da arte na tentativa de inscrever o amor? É possível falar de amor sem arte/poesia? Há amor materializado nas telas surreais de Dalí? Suas obras teriam estatuto de cartas de almor?