EBP-BA, NOITE DA BIBLIOTECA – 14/09/2022
Mais um: Lucy de Castro – Membro da EBP/AMP:
Nesta Noite da Biblioteca, em que Cartéis conversam em torno de duas obras publicadas no Campo Freudiano – O que do encontro se escreve: estudos lacanianos, de Pierre Naveau, e Parejas célebres: lazos inconscientes, de Dalila Arpin –, coube-nos, enquanto Cartel, apresentar PICASSO Y DORA MAAR – El Minotauro y la mujer que llora, de Dalila Arpin, articulando-o ao capítulo XII, “O encontro – do impossível ao contingente”, do livro de Pierre Naveau.
Não é demais ressaltar que o Cartel – dispositivo fundamental da Escola de Lacan – faz dessa Escola um corpo vivo.
Foi esse sentimento que tocou os cartelizantes, em número de quatro, “a justa medida”, ao responderem SIM ao convite de Luís Felipe Monteiro, Diretor de Biblioteca da EBP-Ba, para apresentarem suas produções nesta Noite da Biblioteca.
Também, com entusiasmo, disse SIM ao convite de Luís Felipe para ocupar a função de Mais um no Cartel, ao qual me integrei cônscia de que não ocuparia ali o lugar de mestre.
Não me foi difícil exercer a função específica de zelar pelo andamento do cartel, favorecer a elaboração coletiva e ao mesmo tempo manter viva e destacada a questão de cada um, junto aos cartelizantes Fernanda Pigeard, Rafael Chaves, Luciano Matos e Camila Abreu, todos Associados do INSTITUTO DE PSICANÁLISE DA BAHIA (IPB).
Tenho a dizer sobre esse Cartel que conseguimos trabalhar de forma articulada. Todos os cartelizantes participaram ativamente e desejaram produzir. Vamos ouvi-los:
1) PICASSO e DORA MAAR – O ENCONTRO
Fernanda Pigeard[1]
É certo que as mulheres de Picasso estiveram a serviço da sua busca artística. Dentre elas, Dora Maar foi a mais desconhecida e também a mais enigmática. Um estranho amor – e qual amor não o é? – cujo primeiro encontro acontece fortuitamente em um café na França. Naquele instante, o olhar de Picasso – tal como no verso de Caetano Veloso – é arrastado como um ímã pela imagem daquela bela mulher. Além de cabelos negros como ébano e vestida de preto, ela adentra o recinto com expressão inabalável e oferece algo mais… Picasso é tomado por essa visão! Ele sustenta seu olhar quando, então, ela apoia a mão esquerda em cima da mesa, apanha um canivete e com os olhos fechados vai fincando a lâmina entre um dedo e outro, de forma sequenciada, em um estranho ritual, de tal maneira que acaba se ferindo e deixando rastros de sangue. A cena fascina Picasso, que, então, pergunta seu nome e pede sua luva ensanguentada para guardá-la em seu armário de tesouros, momento em que Dora lhe diz: “Toma minha mão, eu me entrego”.
Por trás da mulher do canivete, estava a mulher torturada, ferida, que se oferece ao olhar do Outro. O gozo se presentifica; a satisfação para mais além do princípio do prazer vinculado ao olhar e as feridas estão lá. De um lado, seu pai que a convidava a olhar para fora; de outro, sua posição de objeto do olhar de sua mãe que lhe aprisionava. Luz e sombra, tão marcadamente presentes em seu trabalho como fotógrafa que era.
Picasso, por sua vez, imediatamente se apodera do convite e do instrumento da cena do sacrifício. Apodera-se da luva com sangue. Pega o objeto e toma a mulher. A luva é seu condensador de satisfação, o significante que a representa.
E naquele mesmo dia de outubro de 1935, Dora se oferece em sacrifício a Picasso, que aceita – sem titubear – assumir o lugar do seu mais íntimo algoz. Sim, naquele breve instante do encontro entre Picasso e Dora, o enlace inequívoco de uma perversão com um enigma se deu. E é nessa mesma cena paradigmática que já se fazem presentes os elementos constitutivos daquela relação: o mesmo que os atrai será o mesmo que os separa.
Para Dora, Picasso é o protagonista da sua mais bela história de amor – talvez a única. Para Picasso, Dora ocupa o lugar de um ser dominado, de um mero animal de companhia, a quem ele direciona desprezo, tal como fazia com seu pai, figura diminuída pelo tio materno e com quem Picasso mantinha um perpétuo duelo. Dora é, para o artista, seu pai? Será por isso que Picasso se esforçava em torcer, deformar e deslocar o corpo das mulheres? Que mistério se oculta detrás da figura da mulher para provocar assim seu gênio destruidor?
Picasso ocupa o lugar do torturador capaz de causar a dor que é esperada por Dora, e o choro parece ser a linguagem possível na tentativa de um entendimento impossível entre eles: a que chora e o que faz chorar. Ela, a prisioneira que entrega as chaves da prisão que quer ser encarcerada; ele, o carcereiro assumido que recebe as chaves com todo prazer.
A entrega consentida de Dora, aparentemente sem sentido, parece fazer ressonância com o belo soneto de Florbela Espanca (poeta portuguesa) intitulado “Fanatismo”:
Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida.
Meus olhos andam cegos de te ver.
Não és sequer razão do meu viver
Pois que tu és já toda a minha vida!Não vejo nada assim enlouquecida…
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No mist’rioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!…“Tudo no mundo é frágil, tudo passa…
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!”E, olhos postos em ti, digo de rastros:
“Ah! podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: princípio e fim!…”[2]
E, assim como uma peça da complexa engrenagem do gozo obscuro de Picasso, Dora é trocada por uma nova mulher. Em suas palavras, Dora, a mulher que chora, declara: “não fui sua amante, Picasso foi meu amo” e mais ainda: “depois dele, só Deus”.
Referências
NAVEAU, Pierre. Encontro: do impossível ao contingente. In: NAVEAU, Pierre. O que do encontro se escreve. Belo Horizonte: EBP, 2017.
ARPIN, Dalila. Picasso y Dora Maar – El Minotauro y la mujer que llora. In: ARPIN, Dalila. Parejas célebres: lazos inconscientes. Buenos Aires: Grama, 2018.
2) NOS RASTROS DO IMPOSSÍVEL AO CONTINGENTE
Rafael Chaves de Barros[3]
Uma vez sentada à mesa, com os olhos fechados, coloca o canivete entre os dedos. Quando ela levanta a mão, sobre a mesa, há vestígios de sangue. Fascinado por essa cena, Picasso pergunta pelo seu nome e pede a luva ensanguentada. Essa luva é tanto um condensador de satisfação quanto significante que a representa para o outro. Segundo a lenda, Dora teria dito: “pegue minha mão, eu me dou”. Picasso aceita imediatamente o convite. Essa cena é paradigmática, uma verdadeira montagem fantasmática. De um lado Dora, que se oferece ao olhar do Outro como mulher ferida, oferecendo-se quase que em sacrifício a Picasso.[4]
Esta passagem, traduzida livremente, nos apresenta os rastros do impossível ao contingente entre Picasso e Dora Maar. Cada um no seu exílio, ambos demarcam dois lugares diferentes nesta parceria: do lado do homem, o gozo é perverso, dirigindo-se à mulher enquanto reduzida ao objeto a. Já do lado da mulher, o gozo do seu corpo é enigmático, nada se sabe sobre ele. Ambos os polos trazem suas respectivas idiossincrasias e apontam para uma inadequação: “[…] o homem não sabe o que é uma mulher para ele; uma mulher não sabe sobre aquilo que goza […]”[5]. Dito de outra maneira, a marca da impossibilidade reside na inexistência da relação sexual, escrita sobre a qual nada podemos dizer, pois ela “não cessa de não se escrever”.
O que podemos pensar desse desencontro sexual? A aposta é que dele, algo se articule; tal como os rios Negro e Solimões, que, desencontrados, se encontram nas curvas e dão lugar a um outro rio, o Amazonas. Algo é escrito, mas as águas que se entremeiam entre esses rios nunca são as mesmas. Isso nos leva a pensar que são nas curvas da vida (ou esquinas da vida) que o encontro amoroso também acontece. No momento do encontro, a contingência é posta em jogo: algo que se articula e se produz inconscientemente nessa relação entre sujeitos, através das pistas simbólicas da história de cada um, possibilita a escrita de algo. Um saber emerge e, dessa maneira, “cessa de não se escrever”.
Entretanto, a partir do momento em que o sujeito transforma aquilo que foi da ordem contingente em algo que busque preencher sua falta inerente, passando ao “não cessa de se escrever”, o sujeito submerge na ilusão e torna o que era do encontro em necessário. Nesse sentido, engancha-se na crença de que a partir dos dois obtém-se UM (a cara metade), a completude. Portanto, situamo-nos no nível do sentido, do imaginário.
É difícil falar de UM sentido para o amor. Lacan, no Seminário 1, segundo sua indicação, ao trabalhar as três paixões fundamentais – o amor, o ódio e a ignorância – e sua articulação com os três registros, localiza o amor entre o simbólico e o imaginário[6]. O que não quer dizer que ele seja signatário de um ou de outro; ele está na junção de ambos. Logo, subentende-se o amor enquanto força motriz, esteja na ordem de uma produção de saber, possibilitando algum enodamento. O amor convoca sempre a um novo encontro e um saber fazer diante dele. Senão, segundo Barros[7], quando cita Lacan no Seminário Mais, ainda: “o drama do amor acaba se tornando o mesmo drama do neurótico, porque quer fazer do encontro um costume”. Logo, acaba perdendo a dimensão do “[…] que não seja imortal, posto que é chama / mas que seja infinito enquanto dure”[8].
3) LAÇOS DO INCONSCIENTE
Luciano Matos[9]
O terceiro me chegou (encontro?), como quem chega do nada. (do impossível da relação sexual?) Ele não me trouxe nada. (érastès ou érôménos?) Também nada perguntou. (Che vuoi?) Mal sei como ele se chama, mas entendo o que ele quer. (Outro?) Se deitou na minha cama, e me chama de mulher. (objeto pequeno a?) Foi chegando sorrateiro e antes que eu dissesse não. (ein einziger Zug?) Se instalou feito um posseiro, dentro do meu coração. (contingência, amor?)
Terezinha, Chico Buarque de Hollanda
A quem Tereza deu a mão? A quem Dora Maar deu a mão ensanguentada? Por que Dora permanece enamorada até o final de seus dias deste homem que a maltrata, ao ponto de exclamar que depois de Picasso, somente Deus? É uma mulher moderna, sexualmente emancipada, que chora, solitária, de caráter forte, propensa a tempestades, teimosa, apresenta mudanças de humor, traços de orgulho e alta autoestima. Tem paixão pelas touradas e atração pela morte. Dentre as mulheres de Picasso, foi a única que fez uma carreira artística[10].
O que faz a ligação entre Pablo Picasso e Dora Maar? O olhar de Picasso cai sobre ela. Ele a pinta como modelo, vê seu talento e menospreza sua arte. Uma arte menor. Utilitária… ela é que é útil… a arte dela, não. Pablo e Dora se amam como homem e mulher respectivamente. Para o homem, fetichista, a mulher vem a ocupar o lugar do objeto do desejo, mas especialmente de seu gozo. Enquanto a mulher, desprovida do falo, é com todo seu ser que aspira ser amada. O amor do lado mulher é erotômano, posto que somente pode vir do Outro. Dora se oferece assim ao amor desse homem e, crendo se entregar a seu amor, se encontra presa de seu gozo.[11]
Lacan, no capítulo XI do Seminário 20, diz que o discurso psicanalítico revelou de importante que “o saber, que estrutura por uma coabitação específica o ser que fala, tem a maior relação com o amor”. E usa, então, a expressão “todo amor” e acrescenta que ele “se baseia numa certa relação entre dois saberes inconscientes”. A base da argumentação inicial de Lacan é que “não há relação sexual”, em que relação sexual é definida como aquilo que “não pára de não se escrever”; há impossibilidade e que, também, não há dentro do dizer, existência da relação sexual. Ele sustenta a argumentação usando o diagrama da sexuação, afirmando que o gozo do Outro, tomado como corpo, é sempre inadequado: perverso de um lado, no que o Outro se reduz ao objeto a, e louco do outro, enigmático. Daí faz uma pergunta: “não é do defrontamento com esse impasse, com essa impossibilidade de onde se define um real, que é posto à prova o amor?”
Assim, o encontro com o parceiro, que Lacan chama de “destino fatal”, acontece, e o amor se realiza através da “coragem”. Lacan pergunta se não se trata, essa coragem, “dos caminhos de reconhecimento”. E define reconhecimento como a maneira pela qual a relação dita sexual, entre os sujeitos “pára de não se escrever”. Lacan chama “parar de não se escrever” de contingência, e “não pára de se escrever” ao necessário. O necessário não é o real.
Na contingência, só há encontro, “[…] no parceiro, dos sintomas, dos afetos, de tudo que em cada um marca o traço do seu exílio, não como sujeito, mas como falante, do seu exílio da relação sexual”. Então pergunta: “Não é o mesmo que dizer que é somente pelo afeto que resulta dessa hiância que algo se encontra, que pode variar infinitamente quanto ao nível do saber, mas que, por um instante, dá a ilusão de que a relação sexual pára de não se escrever?”
O que seria este algo que se encontra?[12]
No deslocamento da negação do pára de não se escrever ao não pára de se escrever, da contingência à necessidade, Lacan diz que é onde está o ponto de suspensão a que se agarra todo amor. E esse substituto é que constitui o destino e também o drama do amor. A relação entre dois seres não é uma relação de harmonia, que Lacan chama de “entravar-se numa apreensão de miragem”. O amor é que chega a abordar o ser como tal no encontro, “[…] enquanto suposto a uma frase articulada, a algo que se ordena ou pode se ordenar por uma vida inteira”. Entretanto, acrescenta Lacan, não há muito a fazer, em relação ao gozo, mas “[…] por outro lado, seu signo é suscetível de provocar o desejo. Aí está a mola do amor.”[13]
Os laços inconscientes, contingentes, também parecem acontecer no fenômeno da transferência. Ainda no Seminário 20, Lacan fala sobre a “escolha do amor”, isto é, do “reconhecimento a signos sempre pontuados enigmaticamente, da maneira pela qual o ser é afetado enquanto sujeito do saber inconsciente”. No capítulo XXIV do Seminário 8, em referência ao texto “A identificação” – no qual Freud pontua que há três tipos de identificação e destaca nos dois primeiros que a identificação se faz sempre por ein einziger Zug, um traço único, “um traço da pessoa-objeto”[14] – Lacan acrescenta que possivelmente este é um signo e é definido como “[…] o caráter pontual da referência original ao Outro na relação narcísica”. Lacan, acrescenta que o “olhar do Outro”, concebido como sendo “interiorizado por um signo”, é suficiente para a identificação, não sendo necessário “todo um campo de organização e de uma introjeção maciça”. E acrescenta:
Este ponto, grande I, do traço único, este signo do assentimento do Outro, da escolha de amor sobre a qual o sujeito pode operar, está ali em algum lugar e se regula na continuação do jogo do espelho. Basta que o sujeito vá coincidir ali em sua relação com o Outro para que este pequeno signo, este einziger Zug, esteja à sua disposição.[15]
4) O QUE NOS ENSINA A HISTÓRIA DE DORA MAAR?
UMA LEITURA PELA VIA DA DEVASTAÇÃO FEMININA
Camila Abreu Costa[16]
Nesta produção, gostaria de destacar dois pontos que me fizeram questão: o primeiro diz da relação de Dora com sua mãe durante sua infância e adolescência; o segundo, da relação de Dora com Pablo Picasso. Dora nasceu no oeste da França, em 1907, filha de pai croata e mãe francesa. Como bem disse Fernanda Pigeard, a relação de Dora com sua mãe foi marcada por um aprisionamento. A mãe de Dora espiava os movimentos da jovem através da cortina que cobria a porta de vidro, localizada entre o quarto dos pais e o de Dora. Dora se sentia como se estivesse em um aquário, sendo observada. Além disso, ela vestia a filha de forma pomposa e teatral, destacando sempre chapéus variados, que mais tarde foram pintados por Picasso em diversas obras, como se fosse uma marca de Dora. A mãe de Dora também era uma católica fervorosa e tinha uma alma amarga. Era tímida, desconfiada e medrosa.
Desde criança, Dora sempre foi muito sensível ao olhar. Seu pai era um dos melhores arquitetos do país; quando a filha era criança, ele a levava para o topo de um prédio para observar seu trabalho, utilizando um telescópio. O pai de Dora não pareceu intervir aos imperativos da mãe, mas exerceu um papel importante, que foi de apresentar Dora à arte e vice-versa.
Em 1936, Dora foi apresentada a Pablo Picasso pelo poeta Paul Éluard no terraço de um café, na França. Pablo logo se sentiu atraído por sua beleza exuberante. O enamoramento entre eles durou cerca de nove anos. Porém, Dora não era a única. Picasso era conhecido por ter uma vida amorosa rica em encontros, e o traço que chamava sua atenção nas mulheres era que elas estivessem a serviço de sua busca artística. Quando conheceu Dora, ele sustentava uma outra parceria amorosa com Marie Thérèse e durante anos alternou suas visitas entre Marie e Dora Maar, que era amante.
Dora era uma fotógrafa renomada e a única das mulheres do pintor que conheceu Lacan. Será que, por ter uma carreira artística, Dora entrou no rol de apaixonamento do pintor? O fato é que ela era extremamente deslumbrada por ele, ao ponto de dizer que depois dele só haveria Deus. A parceria de Dora com Picasso era marcada por maus-tratos e por um olhar invasivo do pintor, que a usava para pintar.
Aqui já podemos pensar em um ponto importante da posição de gozo de Dora: “SER VISTA”.
O encontro entre um homem e uma mulher se revela como sendo entre uma perversão e um enigma. Um homem não sabe o que quer uma mulher e uma mulher não sabe sobre aquilo que goza. Um encontro, portanto, está ligado por uma impossibilidade articulada por Lacan como inadequação. Assim, um encontro… uma parceria, é marcado pela relação entre sintomas[17].
Dora: ser vista/ Picasso: ver e pintar. Mas o que há para além disso? Uma leitura possível e inevitável se apresentou neste cartel como uma via pela devastação feminina. Um tema muito difícil de ser bordeado em tão pouco tempo.
Lacan, no Seminário 20, nos ensina que a paixão pode ser a ignorância do desejo, e quando olhamos mais de perto, percebemos a devastação[18]. Ainda neste seminário, ele diz: “a filha espera mais substância de sua mãe do que de seu pai”[19]. Mais tarde, no Seminário 23, ele nos traz que na devastação um homem é para uma mulher uma aflição pior que um sintoma e que a devastação é o retorno da demanda de amor para uma mulher[20].
Mas afinal, o que é devastação para a psicanálise? Lacan apresenta a devastação também no texto “O aturdito” (1972) e afirma que a menina parece esperar algo da mãe que não se situe apenas pelo signo de castração, ou seja, que não se situe sob o significante falo[21].
Diante disso, a relação entre mãe e filha e suas repercussões para a sexualidade feminina verificam, em muitos momentos, a vertente da devastação no gozo feminino que pode se apresentar de variadas formas. Indo por esta via, um encontro com o Outro, ou até mesmo uma parceria amorosa, não necessariamente faz signo de amor. Uma leitura possível da posição de Dora diante de Picasso pode vir a ser a devastação, que reproduz uma relação pré-edípica com a mãe. E a posição de Picasso, o gozo perverso. A cena do sangue, por exemplo, é como se não houvesse nada para além do instante, do retrato. O instante do encontro proporcionou a Picasso uma ilusão de que a relação sexual se escreve. A grande questão é que mesmo com muitos encontros com Dora e um apaixonamento de anos, a “coisa” não passou desse ponto. A dimensão da falta, por exemplo, não apareceu. E Dora não conseguiu mais enxergar o amor, já que nas palavras dela “jamais haveria outro que não fosse Picasso”. E se não fosse ele, só Deus! Tornou-se Dora uma mulher invisível?