Contagem regressiva!
A 24ª Jornada da Seção Bahia se aproxima!
Começamos agradecendo ao exercício de Ana Martha Maia, desde o Rio de Janeiro, de produzir uma disciplina do comentário, como verão a seguir, sobre lalíngua, apalavra e interpretação, a partir de um parágrafo de JAM em A fuga do sentido.
A equipe (In)Temporal também solicitou que um participante de cada cartel da comissão científica escrevesse ao menos um parágrafo sobre cada eixo temático e já brindamos aqui do porvir das discussões nos dias 25 e 26 de outubro de 2019.
Lembramos que ainda há tempo de se inscrever!
Visite nosso site: http://www.ebpbahia.com.br/jornadas/2019/inscricoes/
Abraços e até breve!
Equipe (In)Temporal
Ana Martha Wilson Maia (Membro EBP-Rio/AMP)
« Lalengua tiene una dimensión diacrónica y tiene una dimensión ‘individual’.
Ese concepto que Lacan forja vuelve a incluir la invención de
cada uno como aporte a la comunidad que habita lalengua ».
Jacques-Alain Miller, La fuga del sentido, p.147.
Neste seu curso de orientação lacaniana, Miller organiza termos que Lacan propõe colocando a palavra, a linguagem e a letra do lado esquerdo de uma tabela e a apalavra, lalíngua e lituraterra, do lado direito. Os três primeiros termos estão no título de dois textos dos Escritos dos anos 50: « Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise » e « A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud ». Os outros termos são neologismos que Miller recolhe do último ou penúltimo Lacan, enfatizando que reorientam seu ensino nos anos 70, ou seja, é um novo giro em torno de coordenadas fundamentais.
Se a linguagem é uma estrutura definida por Lacan no Seminário 20 como « uma elaboração de saber sobre lalíngua », lalíngua é « hecha de aluviones que se acumulan de los malentendidos de cada uno y de las creaciones lenguajeras de cada uno » (p.147). Como uma massa sonora que traumatiza o corpo, deixando nele uma marca de gozo, lalíngua não serve para comunicar, para fazer laço com o Outro. Assim, a partir de lalíngua, a palavra perde seu lugar para a apalavra, em que não há diálogo, não há comunicação, não há Outro, mas « há autismo » (p.150). Isso fala, isso goza, num uso rápido do termo autismo Miller chama a apalavra de autista. No contexto do inconsciente estruturado como uma linguagem, a verdade fala. No de lalíngua, é o gozo que fala.
Disso decorre um deslocamento da definição de linguagem como estrutura para linguagem como um aparelho de gozo e uma mudança no lugar da interpretação na experiência analítica. « Una estructura se descifra, se construye » (p.155), possui a finalidade de conhecimento da realidade, enquanto que a função do aparelho está relacionada ao gozo. « Desalojamos el infinito de la interpretación » (p.156), enfatiza Miller, porque quando ela visa o sentido, não produz limite, relança, infinitiza. Na direção contrária ao princípio do prazer, o giro de Lacan promove assim a interpretação como uma formalização da apalavra que suporta o real como impossível, promovendo uma redução do isso quer gozar para isso não quer dizer nada.
Decididamente, em nossa Escola, nos ligamos aos pontos da teoria analítica sobre os quais Freud declarou seus limites: da questão da feminilidade aos impasses próprios do final da análise via tempo. A questão “O que quer a mulher” é contemporânea da declaração de Freud de “nunca ter conseguido penetrar perfeitamente em apenas um caso”[i] nessa primeira ligação de uma filha com sua mãe, que é para Freud a fonte mesma das características específicas da feminilidade. Seis meses mais tarde, Freud encontra um outro ponto diante do qual ele se rende: este ponto tem a ver com o tempo. Na lição XXXI das Novas Conferências… sobre a desconstrução da personalidade, quando ele apresenta o inconsciente – como ele diz – sob sua nova designação, o Isso, ele conclui pelo enigma da permanência inalterável do recalcado da parte do tempo, com uma queixa: “infelizmente, sobre esse ponto, eu tampouco, não consegui ir mais além”[ii]. Onde foi mesmo que Freud se deteve?
Conhecemos a tese freudiana sobre o tempo. Ela foi anunciada claramente em 1907 em uma nota acrescentada à Psicopatologia da vida cotidiana: Das Umbewussteistüberhauptzeitlos,[iii] “o inconsciente está fundamentalmente fora do tempo”. É o termo zeitlosque melhor define o inconsciente com relação à temporalidade, termo que retorna sobretudo na pena de Freud em seu texto princeps sobre esse tema: O inconsciente: “Os processos do sistema InCs estão fora do tempo”[iv]. Em seu artigo “O inconsciente” Freud define o fora do tempo (zeitlos) dos processos inconscientes como sendo seu não ordenamento temporal, pela sua não modificação no transcorrer do tempo e pela sua não relação com o tempo, uma vez que ele liga o tempo ao trabalho do sistema Cs. No texto de 1932, Freud define o fora do tempo (zeitlos) do Isso pela ausência de três níveis: não há nada que corresponda no Isso a uma representação do tempo (Zeitvorstellung), não há nenhum reconhecimento do transcorrer do tempo, e nenhuma modificação do processo psíquico é produzida durante esse transcorrer do tempo. É esse último aspecto, sempre presente, que mais espanta Freud e – algo inabitual – ele faz apelo aos filósofos para uma avaliação exata do fenômeno. Kant é seu interlocutor, como já havia sido em “Mais além do princípio do prazer”. Mas enquanto no texto de 1920 Freud rejeita Kant afirmando: “a tese kantiana segundo a qual o tempo e o espaço são formas necessárias de nosso pensamento pode hoje ser colocada em questão como consequência de alguns conhecimentos psicanalíticos”, em 1932[v] ele prefere constatar simplesmente que o Isso é uma exceção à tese kantiana: no Isso observa-se “com surpresa uma exceção à tese dos filósofos de que o espaço e o tempo são formas necessárias aos nossos atos psíquicos”[vi].
Nestes textos, portanto, o tempo é o apanágio do consciente e do Eu, enquanto o Inconsciente e o Isso escapam dessa lógica, e a representação abstrata do tempo é inteiramente derivada “do método de trabalho do sistema P-Cs[vii]”. Com efeito, para Freud, a relação ao tempo apenas se torna possível através do sistema perceptivo: “está praticamente fora de dúvida de que o modo de trabalhar deste sistema está na origem da representação do tempo (Zeitvorstellung)”[viii]. Freud retoma no final deste texto a origem da representação do tempo já esboçada no texto “Mais além do princípio do prazer”: segundo Freud, estamos em direito de supor que é a descontinuidade própria do funcionamento do sistema P-Cs que está na origem da representação do tempo[ix]. Ora, essa descontinuidade, que ele atribui à corrente das inervações e à existência de um período refratário à excitação do sistema perceptivo, Freud o atribui ora ao inconsciente[x], ora ao Eu[xi].
Outro ponto: com relação aos desejos que nunca saíram do Isso e às impressões prolongadas no Isso pelo recalque, e que ficam constantemente ativos e “virtualmente imortais” (unsterblich), a psicanálise produz um efeito de desvalorização e de privação de seus investimentos libidinais, sobre o qual se baseia o efeito terapêutico do tratamento analítico, nos dizeres de Freud. Ora, nesse texto, Freud mantem a prioridade atribuída ao valor epistêmico do tratamento: os desejos e impressões “poderão ser reconhecidos como fazendo parte do passado (Vergangenheit) (…) somente quando eles se tornam conscientes através do trabalho analítico”[xii]. Esta tese já havia sido anunciada na Interpretação dos sonhos, mas com um tom diferente: o efeito terapêutico da psicanálise não é tornar consciente os processos inconscientes, mas, ao contrário, esquecê-los[xiii]. Será que o poder terapêutico da psicanálise está emconduziros processos inconscientes ao saber consciente, fazê-los passar do Isso ao domínio do Eu, ou conduzir os desejos inconscientes, fora do tempo, à temporalidade que é própria ao sujeito? Mas, se é assim, o único tempo do sujeito é aquele que a linguagem articula para o “ser-para-sexo”.
Não é justamente isso que o sonho ensinou à Freud, quando ele constatou que o sonho toma a liberdade de expressar a temporalidade pelo espaço? Como Freud diz em sua 24ª lição das Novas Conferências, dedicada à revisão da teoria do sonho – quando ele recorre, para explicar este deslocamento do trabalho do sonho, “à significação originária (Urbedeutung) do termo”[xiv]Haufen – de onde provêm tanto a frequência (Haüfigkeit) relativa ao tempo, quanto à multiplicidade (Haüfung) relativa ao espaço.
Mas Freud não tinha os instrumentos para ler o tempo pela linguagem e, à época, em 1932, ele considerava que não havia muito tempo para se debruçar mais longamente “sobre descobertas tão pequenas” (Kleinfunden)[xv].
Tradução: Marcelo Veras
[i] Freud S., “Über die weiblicheSexualität”, Gesammelte Werke, XIV, p.519
[ii] Freud S., “Neue Folge der VorlesungenzurEinführung in die Psychanalyse, GW., XV, p.81
[iii] Freud S., “ZurPsychopathologiedesAltaglebens”, G.W., IV, p305
[iv] Freud S., “Das Unbewusste”, G.W., X, p.286. Além das referências assinaladas, cf.”Abhandlung M”, “ZurAetiologiedesHysterie”, G.W. I, p.456; “ZurEinfürungdesNarzissismus”, G.W. X, p.164
[v] Freud S., “JenseitsdesLustprinzips”, G.W., XIII, p.27-28
[vi] Freud S., “Neue Folge der VorlesungenzurEinfühurung in die Psychanalyse”, G.W., XV, p.80
[vii] Freud S., “JenseitsdesLustprinzips”, GW., XIII, p.28
[viii] Freud S., “Neue Folge der VorlesungenzurEinfühurung in die Psychanalyse”, G.W., XV, p.82
[ix]Freud S., “Notizüber den Wunderblock”, G.W., XIX, p.8
[x]ibid
[xi] Freud S., “Die Verneinung”, G.W. XIV., II-III, p.584
[xii]Freud S., “Neue Folge der VorlesungenzurEinfühurung in die Psychanalyse”, G.W., XV, p.80-81
[xiii] Freud S., “Die Traumdeutung”, G.W., II-III, p.584
[xiv]Freud S., “Neue Folge der VorlesungenzurEinfühurung in die Psychanalyse”, G.W., XV, p.27
[xv]Ibid., p.28
“Há-com-chegue”
É com alegria que a comissão de acolhimento faz uso do (In)Temporal como um lugar de preparação para as boas-vindas da 24ª Jornada da Escola Brasileira – seção Bahia: “Tempo de interpretar”. Ao tomar a palavra aconchego como “amparo físico junto a alguém ou a algo”, selecionamos os hotéis mais próximos ao local do evento – com destaque ao Vilá Galé, que possibilitou aos participantes da jornada uma estadia com valor promocional.
No segundo momento desse número, o precioso documentário “Toponímia de Salvador” narrado por Cid Teixeira, nos conta sobre a origem dos nomes de ruas e bairros da capital, ao mesmo momento em que assistimos a imagens recuperadas da cidade de 1975.
Logo depois, um pequeno trocadilho com o tema da nossa jornada “interpretação”. Como seria a interpretação em outros cenários? A pergunta vale como um ponto de partida sem ponto de chegada. A ideia é poder viajar não só a Salvador, mas nos inúmeros caminhos de pensar a psicanálise e o tempo de interpretar.
Como estamos no momento da escrita dos trabalhos, criamos duas playlists no Spotify para inspirar e colocar o corpo em movimento: uma com músicas que têm relação com o tema da jornada e outra da Bahia.
Por fim, gostaríamos de chamar atenção aos prazos para envio do resumo e do trabalho final! Estamos à disposição através do número de WhatsApp +55 71 9.8320-8866 e do e-mail xxivjornada@ebpbahia.com.br.
A comissão de acolhimento:
Bruna do Vale
Camila Abreu
Júlia Jones (coordenadora)
Axé axé!
Mais um (In)Temporal! Mais alguns flashes preparatórios para a Jornada de outubro da Seção Bahia!
Neste número, apresentamos um vídeo do Professor Ademir Santana, introduzido com as palavras de Marcelo Veras. #ficaadica1
Em sequência, Luiz Felipe Monteiro e Pablo Sauce responderam em um parágrafo à pergunta: como se dá a interpretação na urgência subjetiva? #ficaadica2
E Anamaria Vasconcelos, desde Pernambuco, nos enviou sua contribuição em resposta à pergunta: há interpretação no autismo? #ficaadica3
Lembramos que as inscrições seguem abertas com desconto até 30 de agosto! Visite nosso site: http://www.ebpbahia.com.br/jornadas/2019/
Equipe (In)Temporal
Caros amigos,
Convidamos o Professor Doutor em Física da Universidade Federal de Brasília Ademir Santana para nos introduzir a questão do tempo na física e de como podemos pensar o real dessa temporalidade em relação ao real em jogo em uma psicanálise. Esse é o primeiro vídeo. Ademir nos mostra a relação do tempo com o espaço, elementos ordenadores das relações entre os homens, estabelecendo as leis do mundo habitável do falasser. A interpretação analítica é sempre um corte que incide nesse ordenamento. Ela faz surgir um real intemporal que rompe a cadeia significante e aponta para um gozo fora dos limites do universo desenhado por Aristóteles. Se os homens não vivem sem seus relógios, a mulher é o que sempre escapa ao tempo do Outro, ela nunca é tempo encontrado, é sempre tempo perdido. Ou a perder-se…
Marcelo Veras (Membro da EBP-Ba/AMP, Coordenador da XXIV Jornada da EBP-Bahia)
Prof. Dr. Ademir Santana, possui graduação em Bacharelado em Física pela Universidade de São Paulo (1980), mestrado em Física pela Universidade de São Paulo (1983), doutorado em Física pela Universidade de São Paulo (1988) e pós-doutorado pela University of Alberta, Canadá (1994-1996). Atualmente é professor titular no Centro Internacional de Física, Instituto de física, da Universidade de Brasília. Atua em física de Partículas e Campos, principalmente nos seguintes temas: dinâmica de campos térmicos (thermofield dynamics), covariância galileana, álgebra de Lie, espaço de fase e teoria quântica de campos confinados a temperatura finita. Neste último caso, analisa a quebra espontânea de simetria na transição chiral da matéria hadrônica. Desenvolve trabalhos na área de ensino de física e fundamentos da física.
A peculiaridade da interpretação nas urgências subjetivas é precisamente possibilitar que uma urgência possa ser subjetivável. Ou seja, que o falasser possa encontrar no real em jogo, um significante que não apenas lhe concerna como também que lhe sirva como ponte para uma outra cena, presente nas atuações, passagens ao ato e emergências de angústia. A interpretação portanto, é uma aposta onde o falasser em urgência possa realizar uma experiência de leitura em seu próprio dizer e com isso colher os efeitos da introdução de um tempo de compreender em meio ao curto circuito temporal que a urgência presentifica.
Luis Felipe Monteiro – (Membro da EBP-Ba/ AMP)
De um modo mais ou menos explícito ou implícito, cada paciente que recebemos carrega seu próprio ponto de urgência subjetiva, ponto de rompimento que o levou a solicitar uma intervenção a partir daquilo que retorna como falha no seu programa de vida (trauma). É essa dimensão da urgência que precisa ser acolhida, lida e localizada pelo analista em sua função de intérprete daquilo que se apresenta sem sucessão significante (S1S2), em um “não há tempo”, sem intervalo nem representatividade.
Nesse ponto o analista opera por fora da transferência propriamente dita, e esta intervenção supõe uma lógica particular no uso do tempo: quando o paciente exige pressa por concluir, o analista propõe abrir um tempo de compreender. Escansão que além de acolher e velar a emergência de gozo que deixou o sujeito no desamparo; aposta, através da palavra que separa o gozo do sentido, articular a urgência e o trauma a um sintoma, instaurando assim, como resultado, a transferência propriamente dita, cuja dimensão já estava em jogo, de entrada, para o analista.
Pablo Sauce – (Membro da EBP-Ba/AMP)
Referência:
Perspectivas de la clínica de la urgencia. Inés Sotelo (compiladora). Grama Ed. Bs As. 2009.
Pela luz dos olhos teus
Tempo de interpretar. Com esse tema, a Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Bahia reafirma o lugar da prática psicanalítica sem renunciar ao horizonte de nossa época, levando assim às últimas consequências o ensino de Lacan.
Gostaria de agradecer pelo convite a pensar numa questão que considero muito importante, não só para a clínica do autismo, mas que repercute bem na psicanálise: Interpretar no autismo é possível? O trabalho do Núcleo de Pesquisa sobre o autismo da EBP – seção PE (2018-19) tem sido um debruçar sobre o livro de Maleval “O autista e sua voz”, onde cada participante busca responder uma questão por si formulada. Nessa obra pude observar a partir da minha leitura a convocação de Maleval para que escutemos os autistas, considerando que no autismo há “uma dificuldade em tomar autenticamente a palavra”(p.16). Ele faz um alerta e crítica, apoiado no testemunho dos autistas, àqueles que em nome da “interpretação psicanalítica” fazem verdadeiras “intervenções medievais”.
Considerando que não há recalque no autismo, afirma que “nem interpretações orientadas para rememoração de sua história, nem aquelas que fazem ressoar o cristal da língua são apropriadas”(p.20) . Alerta, ainda, para que o praticante da psicanálise não entre com suas fantasias reafirmando que se trata de mundos distintos. Sabemos que não há interpretação sem transferência e no autismo é possível e necessário considerar a transferência que se passa pelo duplo.
Miguel Bassols em sua preciosa entrevista concedida ao “Boletim 2” , aborda a modificação que a interpretação teve ao longo do ensino de Lacan. Chega portanto à ideia que a interpretação é um dizer, ela não depende de uma enunciação. Não é um enunciado mas ato de uma enunciação, algo que toca o real em um sujeito. Essas palavras de Bassols me fizeram relembrar uma passagem clínica: João já com 5 anos, não falava, corria pela sala e se escondia atrás de um pequeno móvel que estava com a gaveta aberta e depois aparecia. Com repetições velozes e risos, repentinamente ele se choca na quina da gaveta, vira-se sem emitir nenhum som e os nossos olhos se cruzam. A analista muito assustada com a pancada se antecipa até ele, tocando seu corpo e diz: dói,dói… Encerra a sessão dizendo precisar comunicar a sua mãe o que ocorreu. Nas sessões seguintes começam a aparecer novos significantes: João começa a falar, diz à mãe que caiu na escola, que chorou, etc.
Marie Hèléne Brousse, em seu texto “Os limites da interpretação”, nos diz que “para que um significante tenha efeito de verdade – efeito de forçamento –, é preciso que ele pertença à lalingua do sujeito, que ele faça real, que ele pertença à materialidade significante sonora”. Neste sentido, que ele seja retirado do corpo vivo como um dizer, um movimento de dizer, mas que ao mesmo tempo ele faça real…”. (p. 36)
Poderíamos pensar que estaríamos diante de um exemplo de interpretação em ato quando a analista toca o corpo de João, acompanhado com a oferta do significante “dói, dói”? Considerando ainda, que houve a extração do objeto voz. Vamos conversando…
Anamaria Vasconcelos (Membro EBP-Pe/AMP)
Referências:
Maleval, Jean-Claude (2009) O autista e sua voz. Trad.Paulo Sérgio de Souza Jr. São Paulo: Blucher, 2017.
Bassols, Miguel (2019) disponível em: http://www.ebpbahia.com.br/jornadas/2019/
Wilker França
“A psicanálise muda, isso não é um desejo, mas um fato”. Esta frase de Miller (2014/2016, p. 20), extraída dos dizeres de Lacan em seu último ensino, situa de maneira precisa qual é nossa perspectiva ao relacionarmos o inconsciente, o mestre contemporâneo e a transferência no título da XXII Jornada da EBP-MG. Trata-se de um esforço de elaboração conceitual que visa permanecer o mais próximo possível da experiência, ou seja, daquilo que de fato fazemos em nossa prática analítica hoje. Essa aproximação entre prática e teoria nos conduz inevitavelmente a um questionamento a respeito da concepção que fazemos da transferência, pois, como lembra-nos Lacan (1964/1985, p. 120) no Seminário 11 se, por um lado, “este conceito dirige o modo de tratar os pacientes, por outro, inversamente, o modo de tratá-los comanda o conceito”. Portanto, podemos dizer que se a psicanálise muda, essa mudança acontece na dialética entre teoria e prática.
A psicanálise que praticamos hoje tem exigido, de nossa parte, uma leitura renovada dos conceitos fundamentais tais como a transferência e o inconsciente, o que por sua vez, também interfere nessa mesma prática, modificando-a. Dar a um mesmo conceito, uma leitura inédita é algo ao qual Lacan nunca se furtou. Inclusive, é isso que nos autoriza a identificar em seu percurso um primeiro, segundo e último ensino. Nesse trajeto, embora uma nova leitura não torne necessariamente inválida a anterior, precisamos admitir, concordando com Miller (2014/2016, p. 20), que a psicanálise tanto no que concerne a sua prática quanto à sua teoria “não está mais exatamente em conformidade com que se pensava sobre ela”. Essa diferença da psicanálise com relação a si mesma chega a tal ponto que a transferência, da qual LACAN (1964/1985) fez um conceito fundamental no Seminário 11, pode hoje ser considerada por MILLER (2006-2007/2009) como a grande ausente do último ensino de Lacan.
Mas, para que possamos acompanhar esse salto, me parece importante situar, primeiramente, o ponto de virada, que conduzirá Lacan a uma apreensão do ato de falar completamente distinto do que ele havia proposto até então: fala-se sozinho, para si mesmo e não para o Outro. Essa constatação faz surgir outra forma de apresentação do inconsciente, formulada por Lacan (1977/2003, p. 567), uma única vez, no “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11” escrito logo após o Seminário 23, nos seguintes termos: “o inconsciente é real, caso se acredite em mim”. Embora no Seminário 23 (LACAN, 1975-1976/2007) o inconsciente permaneça, ainda, no registro do simbólico, ao apoiar-se em Joyce, a definição do inconsciente será de tal forma reduzida à materialidade do significante que, conforme nos esclarece MILLER (2005-2007/2009), quinze dias depois de finalizar esse Seminário, LACAN (1977/2003) poderá chegar ao inconsciente real. Nesse registro, a fala passa então a presentificar o inconsciente não como discurso do Outro, mas como a satisfação do Um-sozinho “que não quer dizer nada a ninguém” (Miller, 2008-2009/2011, p. 106). Trata-se de um dizer que se fecha sobre si mesmo, tornando a transição ao Outro precária, o que, por sua vez, conduz a um impasse quanto à transferência concebida como uma suposição de saber endereçada ao Outro e coloca um problema sobre o modo de presença do analista e suas possibilidades de intervenção.
O analista, o ser e o Um.
Mas, o ponto de virada que levará Lacan ao inconsciente real, podemos situá-lo a meu ver, um pouco antes, no Seminário 20 (LACAN, 1972-1973/1985), mais precisamente quando, nesse Seminário, é promovida uma distinção radical entre o ser e a existência, isto é, entre o objeto a e o real.
Segundo Lacan, ainda que o objeto a se encontre no caminho que se dirige do simbólico ao real, sua verdadeira natureza está relacionada ao ser, ao parecer, ao semblante, e não ao real. Como afirma Miller (1991-1992/2002, p. 116), “chamamos de objeto a ao que, nesse desastre do sujeito que se denomina falta-a-ser, parece-nos dar o suporte do ser.” Nesse contexto, o objeto a só encontra sua função como obturador da falta-a-ser, ou seja, pela instituição de um núcleo de sentido, a fantasia, composto pela falta a ser ($) e seu complemento de ser (objeto a) . Na fantasia, o objeto a é capturado por um sentido que tem como coordenada o desejo do Outro: trata-se do objeto que se é para o Outro, um olhar, uma voz …etc. Dessa forma, ao apresentar-se como um ser em relação à falta-a-ser do sujeito, o objeto a “nos leva a confundi-lo de modo abusivo, com o real” (MILLER, 1991-1992/2002, p. 115). Contudo, Lacan (1972-1973/1985, p. 128) conclui que o objeto a “só se resolve no fim das contas, em seu fracasso, em não poder sustentar-se na abordagem do real”.
Assim, no Seminário 20, LACAN (1972-1973/1985) finalmente consente com a natureza de semblante do objeto a e demonstra que, no percurso de seu ensino, assim como no percurso da experiência analítica, o objeto a só permitirá um acesso ao real ao distinguir-se deste, ou seja, ao revelar-se em sua natureza de semblante, ao mostrar que o sentido que ele abriga como ser, que a verdade da qual ele participa, não se sustentam na abordagem do real. No caminho para o real, esse ser, esse semblante que o objeto a é, fracassa e, ao fracassar, faz existir o real como aquilo que, do gozo, não pode fazer-se ser. Portanto, é a partir de um impossível determinado pelo caminho dos semblantes, que o real pode distinguir-se e constituir-se como uma existência para além dos semblantes. Abre-se, aqui, então, outra dimensão, na qual o que existe de não negativizável, isto é, de real, concernente ao gozo pode achar seu lugar não mais como obturador da falta-a-ser, mas como a existência de uma satisfação singular e incurável que Lacan (1972-1973/1975, p. 63) designou com a expressão “Y a d’ l’Un”, “Há Um”. Essa expressão indica que, nesse contexto, não se trata mais do ser e da falta-a-ser, pois, como lembra-nos MILLER (2010-2011)[1], quanto ao gozo não podemos dizer o que ele é, não podemos fazê-lo ser, podemos apenas constatar sua existência, dizer que ele existe. Assim, a existência do Um será suportada, não pela função do objeto a, do semblante, mas pela função do que mais tarde, no Seminário 23, LACAN (1975-1976/2007) chamará de sinthoma.
Essa distinção entre o Ser e o Um toca o âmago da ação do analista, pois, como demonstra a lição XII do Curso de MILLER (2010-2011), se tomarmos como referência o ser, a ação do analista estará centrada e até mesmo reduzida à interpretação concebida como uma “ontologia semântica”. Trata-se da interpretação que cria um ser sem substância, sem existência, a partir do sentido. A interpretação, assim concebida, define a ação do analista pela doação de outro sentido àquilo que se diz. É a interpretação que reconhece o desejo sob aquilo que se escuta do que o paciente diz e que o exibe, ou seja, o faz ser. Como exemplo, podemos citar FREUD (1905/1976, p. 61-90) que ao interpretar a caixa de joias do sonho de Dora como o sexo feminino, faz aparecer um elemento sexual recalcado, ligado ao desejo de Dora. Dessa maneira, o analista, ao dar outro sentido ao que o paciente diz, cria, através da interpretação, um ser de sentido, no qual, de acordo com Miller, o próprio analista está implicado. Isso quer dizer que ao se dirigir ao ser, a partir da interpretação, o analista torna-se, ele mesmo, algo para o paciente: aquele que abriga o sentido do seu desejo, ou seja, o objeto precioso ao qual ele dirige seu amor, ou o objeto que ele odeia, mas enfim, um objeto que de toda forma, é portador de um ser, de um sentido. Há, portanto, uma homogeneidade entre a ação do analista e o ser ao qual essa ação se aplica: eles são da mesma ordem ontológica. Podemos deduzir, então, que, nesse contexto, quando um analista interpreta, ele não só faz surgir, em última instância, a fantasia, mas ele participa dessa fantasia fazendo-se ser. Desse ponto de vista, como observa Miller (2010-2011)[2], a interpretação confere ao analista um “poder criacionista”, pois ele cria um ser a partir do sentido.
No entanto, se tomamos como referência o Um-sozinho, entramos numa dimensão da análise que pode ser situada, certamente, no final da experiência analítica na qual nos deparamos, para além da fantasia, com a permanência daquilo que Freud chamava de restos sintomáticos, que tornam evidente a existência de um gozo incurável que destitui o analista do “poder criacionista que a interpretação do desejo lhe confere” (MILLER, 2010-2011)[3]. Essa destituição é homóloga à constatação da existência, no percurso da análise, de um elemento que “não se pode fazer ser” (Miller, 2010-2011): o gozo. Quanto ao gozo, adverte-nos Miller, o analista deve ser mais humilde e desistir de toda intenção criacionista, pois o gozo não é algo que o analista possa interpretar. O gozo coloca um limite à ação do analista concebida a partir da interpretação como criação de sentido. Esse limite colocado à interpretação do analista, como já dissemos, nós o encontramos, certamente no final da análise, mais além da fantasia, mas o encontramos também, hoje em dia, cada vez mais, em alguns casos nos quais, desde o início, o sintoma se manifesta como uma presença real, como a iteração do mesmo, do Um-sozinho que não se liga a nada, e que, por sua vez, não se deixa apreender pelas tentativas criacionistas por parte do analista. Em nossos dias, diante da evidência da não-existência da relação sexual, observamos que o discurso analisante desnuda-se, muitas vezes, numa fala que é simples conjunção do Um e do corpo, uma fala que não está ligada a um saber, mas a uma satisfação. Uma fala sem Outro, sem par, um enxame de Uns, sem o significante dois, isto é, sem aquele que viria significar o Um que comanda o gozo. Assim, somos colocados diante do paradoxo do Um que dialoga sozinho e se LACAN (1976-1977), no Seminário 24, considera esse dialogo como uma fala solitária é porque esse diálogo se processa entre o Um e o Outro que não existe. Portanto, não se trata apenas da língua em sua dimensão real e material, mas, também, de alguma coisa com a qual não se tem relação. É a presentificação de uma fala na qual a relação com o Outro está rompida. Esse “Outro rompido” (LAURENT, 2018, p. 52), conforme descreve Lacan (1976-1977) no Seminário 24[4], institui uma prática da psicanálise separada do Outro, uma prática que se ordena por “um existe” e um “não existe” (MILLER, 2010-2011)[5]: o que existe tem a ver com o gozo e o que não existe tem a ver com o Outro.
Essa dimensão da experiência analítica nos coloca cada vez mais, diante da insuficiência do poder criacionista do analista, evidenciando que, quando estamos na dimensão do inconsciente real, do Um que dialoga sozinho e do sinthoma, o analista, diferentemente do que propunha LACAN (1964-1985), no Seminário 11, não aparece como fazendo parte do conceito do inconsciente, isto é, como destinatário do discurso do analisante. O analista, conforme propõe Miller (2006-2007/2009, p. 48), surge muito mais como um “intruso“, como aquele cuja presença faz aparecer o que está fora, o que, na fala do paciente, no deslizamento de um significante a outro, é obstáculo, o que não chega a se satisfazer, o que se equivoca, fazendo prevalecer, como veremos mais adiante, antes o furo que o sentido. Portanto, nesse contexto, se a presença do analista pode ser considerada, ainda, como indica Lacan (1964/1985, p. 121) no Seminário 11, como “uma manifestação do inconsciente”, é porque sua presença é passível de dar corpo ao inconsciente real.
O insucesso do inconsciente dá asas ao amor
Estamos acostumados a conceber o amor de transferência como dirigido ao Outro ao qual supomos o saber. Mas, como vimos, quando deslocamos a psicanálise para o registro do Um-sozinho, é justamente essa dimensão do Outro e de seu saber que se desvanece. Será que essa constatação nos levaria a considerar uma prática da psicanálise sem o amor de transferência, sem uma suposição de saber? O Um, diz Lacan (1976-1977, p. 18) “dialoga sozinho porque ele recebe sua própria mensagem sob uma forma invertida. É ele quem sabe e não o suposto saber.” No entanto, mesmo que o analisante fale sozinho, é fato que a psicanálise continua sendo praticada aos pares. Isso nos leva a atestar que, se a prática analítica pode prescindir do Outro, parece que ela não pode prescindir do analista. Em que se sustentaria, então, o laço entre o analisante e o analista?
Ao abordar o inconsciente na dimensão do Um que dialoga sozinho, nos deparamos com o que existe de positivo, de inegável, concernente ao gozo, mas, também, com o limite dessa existência, ou seja, com o que faz furo. No que concerne ao encontro com o gozo, o inconsciente nos mostra, a todo instante, que não é totalmente bem sucedido. É na medida em que o analista presentifica o insucesso do inconsciente quanto à satisfação obtida, fazendo aparecer o furo a respeito do qual o inconsciente não sabe que sabe, que o amor acontece. É a presença do analista que faz esse furo existir de verdade. Por isso, sua presença é suscetível de fazer surgir também o amor, pois o amor, como nos ensina LACAN (1972-1973/1985), no Seminário 20, nasce desse furo, não só da inexistência da relação sexual, mas, ainda, daquilo que do gozo do Um não alcança o gozo esperado. Conforme esclarece LAURENT (2016, p. 67), se o encontro com o gozo fosse totalmente bem sucedido, o autoerotismo seria absoluto, e não haveria lugar para o amor. O insucesso do inconsciente é, portanto, o que dá asas ao amor, asas que podem fazer o inconsciente chegar um pouco mais longe, transportando-o para fora de sua esfera solipsista.
Mas qual amor? No seminário 20 (LACAN, 1972-1973/1985), encontramos a menção a uma concepção do amor que nos ajuda a elucidar essa conjunção feita por LACAN (1976-1977), no título do Seminário 24 entre o amor e o inconsciente tomado como furo. Trata-se do amuro, uma palavra que Lacan inventa para designar uma forma de amor que não desconhece a impossibilidade da relação sexual e que tem como condição a irredutível solidão do Um. O amuro é um amor que porta a marca da inexistência da relação sexual. Através do amuro, Lacan (1972-1973/1985, p. 198) aproxima amor e gozo, pois o furo que instaura o gozo irredutível do Um que constitui o muro que faz barreira à existência da relação sexual é também, ao mesmo tempo, o furo que pode vir a constituir-se como uma abertura para o ”encontro no parceiro, dos sintomas, dos afetos, de tudo que em cada um, marca o traço de seu exílio, não como sujeito, mas como falante, da relação sexual.” Portanto, nessa dimensão do amor, o analista se faz presente para o analisante como furo, mas, também, como parceiro de gozo, isto é, como um sinthoma que “condensa um gozo fora do corpo para um outro corpo diferente do seu” (LAURENT, 2016, p. 65), assim como uma mulher para um homem. Essa maneira de conceber o analista como furo e como sinthoma nos conduz a uma conjunção entre amor e saber distinta daquela na qual o saber está referido ao Outro. Aqui, o saber se apresenta como um saber sobre o gozo, estando intimamente ligado ao fato da análise ser uma experiência, isto é, trata-se de um saber sobre o gozo adquirido a partir de algo que experimentamos, verdadeiramente, quando dirigimos nossa fala a um psicanalista. Desse modo, o amor se liga ao saber, mas de uma maneira renovada, ou seja, como um “saber fazer” com o gozo e com o furo que o acompanha. Trata-se, como diz LACAN (1976-1977, p. 6), de conhecer seu sintoma, de saber se virar com ele, de saber manipulá-lo, assim como fazemos com o parceiro sexual. Para adquirir esse saber, sustentado na materialidade do significante e no gozo como substância, é preciso “empenhar a própria pele” (Lacan, 1972-1973/1985, p. 130), pois trata-se de um saber da língua, mas que não repousa na troca e cujo valor permanece voltado apenas para o seu uso. O saber como valor de troca pode valer também para outro, mas o saber como valor de uso permanece como sendo do Um, do mesmo, sem substituição.
Nesse nível da prática analítica, a transferência, torna-se, a meu ver, não exatamente inexistente, mas, rarefeita, pois evidencia um amor que se sustenta na suposição de um saber no real e não na suposição de um saber no Outro. A suposição, aqui referida, é a de que o sintoma conserva um sentido no real, é essa a suposição que acompanha a fala analisante. Quando endereçada ao analista, a fala faz surgir a crença no sintoma. Essa crença, que tem como visada o real, evoca o amor como suposição de um sentido suplementar. Como define Miller (2000-2001), “o sujeito suposto é amor, na medida em que introduz sentido e saber no real.” O amor é, portanto, a única via pela qual o real inclui sentido e saber e, assim, faz falar o sintoma. É nesse contexto que Lacan irá situar o que pode vir a ser um conceito renovado da interpretação que inclua o sintoma como real.
Ler, escrever, nomear
Referir-se ao uso, no que diz respeito ao sintoma, quer dizer que na experiência analítica “não se trata de fazê-lo desaparecer e menos ainda de fazê-lo desaparecer ao interpretá-lo” (MILLER, 2006-2007/2009, p. 144). Assim, a transcrição da interpretação para o registro do Um-sozinho, tendo como perspectiva o uso que se pode fazer do sintoma, nos conduz, a outro modo operatório da interpretação e, também, a outra forma de conceber o sentido.
No último ensino de Lacan, dar sentido é nomear e não decifrar. Portanto, para LACAN (1974-1975), quando se tem o real em perspectiva, “o que caracteriza o sentido é que se nomeia, aí, alguma coisa e não que a gente se faça compreender”. Trata-se de acrescentar um sentido ao real e não, como esclarece Miller (2005, p. 149) “de se entender com o Outro sobre o sentido”. A nomeação é arbitrária e sem referência a um sentido comum designado pelo Outro. É algo que se inventa através de um forçamento da língua tomada em sua materialidade, isto é, da língua tomada como escrita, como letra, para dela extrair um novo modo de existência do significante ou, pelo menos, um novo uso do significante. Esse novo uso, esse novo modo, encontra sua existência somente a partir do saber ler do analista, ou mais precisamente, quando o analista em sua interpretação se dedica a ler o mesmo, de outro modo. Em seu momento de concluir, LACAN (1977-1978) diz-nos que a condição para se ler de outro modo é ligar esse outro modo ao S de A barrado. Portanto, esse outro modo inclui um furo, uma falha, o que nos leva à conclusão de que nomear é também esvaziar.
Daí a referência que LACAN (1976-1977) faz à poesia ao considerar esse novo estatuto da interpretação, pois a poesia produz ao mesmo tempo um efeito de sentido e um efeito de furo, um esvaziamento. Então, quando um analista acrescenta um sentido ao real através da nomeação, quando ele lê um sintoma, isso não significa nutrir o sintoma de sentido. Pela nomeação a interpretação encontra seu valor de intrusão de um modo novo do significante, e o que faz a novidade é o furo. Sendo assim, no último ensino de Lacan o saber consiste no que é legível e o analista torna-se aquele que é suposto saber ler de outro modo.
Suzane Hommele em seu depoimento no filme “Rendez-vous chez Lacan” (Um encontro com Lacan) faz menção a uma interpretação feita em sua análise por Lacan e que nos mostra de forma muito clara, a interpretação que toma como apoio a escrita permitindo que os sons emitidos possam ser escritos de outro modo, distinto daquele escrito pelo inconsciente. Quando criança, ela viveu os horrores da segunda guerra mundial, o que lhe causava ainda muita dor e sofrimento. Em uma sessão ela disse a Lacan: “Eu acordo sempre às 5h da manhã”, e acrescenta,”‘5h era a hora em que a gestapo invadia a casa dos judeus”. Nesse momento, Lacan dá um pulo de sua cadeira e se aproxima dela tocando a pele de seu rosto com um gesto extremamente terno e delicado, transformando “Gestapo” em “geste à ta peau” – um gesto em sua pele. Segundo Suzanne Hommele, essa surpresa fez de sua dor outra coisa, um apelo à humanidade.
Com esse exemplo podemos entender a proposição de Lacan (1975-1977, p. 18), no Seminário 24, segundo a qual o analista é também aquele que “faz de verdade”, ou seja, aquele que, por um golpe de sentido, por um forçamento feito à língua, faz com que um sentido sempre comum, possa ressoar uma significação vazia. Isso, por fim, nos faz retornar à transferência, pois, o amor, não sendo nada além de uma significação vazia, convoca o analista sempre e a cada vez à invenção de uma palavra agalmática que atravesse o real, uma palavra que possa manter aberto o furo da inexistência da relação sexual, e ao mesmo tempo por essa via a possibilidade do encontro e de um saber que se contenta em recomeçar sempre, até o fim.
È apostando nesse ratear, nesse furo que também são marcas do tempo em que vivemos que, a meu ver, a psicanálise, pela via da transferência que abriga a contingência, poderá fazer frente ao mestre contemporâneo e desfazer a aparente e imperiosa necessidade na qual ele se sustenta.
Simone Souto
Psicanalista, AME- Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
ssouto.bhe@gmail.com
Publicado anteriormente em Curinga 47, Revista da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção MG, 2019.