Dez anos depois do passe, fui convidado para falar num espaço da EOL destinado a fazer teoria da clínica desde os finais de análise dos AE. É um trabalho fundamental na orientação clínica e um dever ético dos ME na Escola. Nesse momento, o Estranho não estava no foco da tarefa, mas escrevi sobre uma experiência dessa categoria.
Em seguida à interpretação do primeiro sonho, e como efeito do desenvolvimento da transferência, fiz dois lapsos.
Um dos lapsos foi o equívoco que cometi ao sair do metrô, quando, ao invés de dirigir-me ao consultório do analista, desci na direção contrária e fiquei completamente perdido, apesar de conhecer muito bem o lugar. Num certo momento, parei diante do muro de um cemitério, totalmente desorientado, sem saber onde estava ou para onde ir. Sentia também que tinha estado frente a essa parede. Cheguei tarde à sessão. O cemitério conduziu-me à interpretação relativa à morte do pai, o que funcionou muito bem porque o outro lapso me havia levado em direção ao filho.
Tempos depois, lembrei-me de um episódio de minha vida que fora muito estranho e se referia a algo do nunca analisado. Estava completamente perdido. Havia um sentimento estranho (aqui usei a palavra estranho). A sensação foi a de que nunca mais poderia sair dali. Senti-me em um momento subjetivo extremamente difícil. Tudo vazio, tudo fechado, e eu sem reação. Isto era o mais grave. Um branco, sem mental. Algo de estranho, obscuro, autístico. Ambas as cenas tomam sustento no saber revelado no instante de ver, na cena do passe. Nela revelou-se um saber luminoso, instantâneo e amplo e, junto a ele, um imperativo categórico de não saber. Esse imperativo de morte incide mais sobre o fazer, produz inibição do ato. Destaquei, naquele momento, que não há saber sem saber fazer e que a mudança mais forte foi o saber fazer com o que se sabe.
Dito de outra maneira, o gozo da pulsão escópica tomado pela luz da cena ilumina o instante de saber; a criança vê e sabe no instante. Desde o Supereu, o olhar e as ressonâncias da voz se associam violentas em um “Não!!”.
Voltando ao escrito: “A interpretação da morte do pai, do luto etc. cobriu essa borda do inconsciente real, algo que não sei explicar. Trata-se de algo sem palavras”. Vemos que há algo mais obscuro que se observa no horizonte do gozo opaco, o Real que não se alcança. É um erro pensar que o real possa ter bordas. O real não tem bordas, é irrepresentável, disperso, impossível, não há movimento. Não se diz, não se escreve, não se imagina. O real HÁ. Nele, não se tem como armar diferenças, fazer conjuntos. O real não sossega, não tem nome, nem forma. O gozo é o real na experiência analítica.
Retomo o trecho clínico desde o texto de Freud, “Das Unheimliche”[1]. Escrito em 1919, um ano antes da virada de 1920, aparecem nele duas instâncias novas: o Isso e o Supereu. O Isso tem a ver com a foraclusão generalizada, a Ur-Verdrangung. É a sede psíquica de um mundo primitivo de ações e de afetos impensáveis hoje. Nesse momento, Freud conta apenas com a ideia de repressão sem a separação entre repressão original, “Ur”, e a repressão propriamente dita.
A conclusão de Freud é que o estranho é uma experiência que ocorre quando complexos infantis reprimidos revivem ou quando crenças primitivas superadas parecem confirmar-se. A formulação ficará mais clara depois da virada de 1920. No campo pulsional, a partição se define entre vida e morte, que abrem o espaço mais além do prazer.
Freud considera que a essência do estranho se deve a dois fatos. O primeiro é que, frente ao terror do Estranho, temos dois tratamentos. Um é a Angústia. Outro, o Retorno. Deve ser indiferente, nos alerta Freud, a questão de saber se o que é estranho era, em si, originalmente assustador.
O segundo fato é: se o retorno é a natureza secreta do estranho, pode-se compreender por que o uso linguístico estendeu das Heimliche [‘homely’ (‘doméstico, familiar’)] para o seu oposto, das Unheimliche, pois esse estranho não é nada novo ou alheio, porém algo que é familiar e há muito estabelecido na mente. Somente se alienou desta através do processo da repressão.
A questão reside em que o retorno do recalcado poucas vezes apresenta a particularidade do estranho. Não é suficiente, para falar de estranho, o simples retorno do reprimido.
Quando Freud alude a populações primitivas, está apontando para elementos que deveriam estar dentro do regime do Isso, mas que se encontram vivos nas sombras do Inconsciente. A resposta é que os elementos estranhos conseguiram escapar à Ur-Verdrangung, apresentam formas de gozo muito fora das formas de nosso mundo mental hoje.
Sempre presente no horizonte do estranho está a morte, e, logicamente, Freud dedica algumas palavras a esse tema.
Nossas ideias e sentimentos têm mudado tão pouco desde os primórdios dos tempos, e formas rejeitadas têm sido tão completamente preservadas sob escasso disfarce, como acontece na nossa relação com a morte. Quase todos nós ainda pensamos como selvagens acerca desse tópico. Não é motivo para surpresa o fato de que o primitivo medo da morte é ainda tão intenso dentro de nós e está sempre pronto a vir à superfície por qualquer provocação.
Do início ao final de sua obra, Lacan relaciona o real com a morte. No Seminário 2, quando trabalha o sonho da injeção de Irma, diz que Freud vê a morte na garganta de Irma e afirma que a morte é o real último. Já no seu último ensino, no Seminário 23, dirá que “a pulsão de morte é o Real na medida em que ele só pode ser pensado como impossível” [2]. Ela é impensável, acrescenta Lacan, para afirmar que o fato de a morte não poder ser pensada é o fundamento do real.
Em outra perspectiva Freud cita a definição do estranho de Schelling. Ela tem a ver com o troumatisme e o instante de ver junto a questões como a pulsão escópica, a aceleração temporal e o poder da Imagem, entre outras. No Resumo do Seminário O ato analítico[3], Lacan destaca a luz do ato que reverbera mais luz sobre o ato. Temas que deixamos para outro momento e que são enlaçados ao poder de satisfação da pulsão escópica. Então, a citação de Schelling sobre o Estranho: “É algo que deveria ter permanecido oculto, mas veio à luz”.