Quando falamos em íntimo, nos referimos aos atos e afetos que o sujeito mantém fora do alcance público. Já ao falarmos de cidade, nos transportamos sobretudo aos espaços públicos, compartilhados por muitos. Nos tempos de hoje, em que público e privado se misturam, é interessante pensar como eles se relacionam entre si, conservando suas características próprias, mas também deixando-se afetar um pelo outro. É com esse espírito que inauguramos a rubrica Intim&cidade, que apresenta discussões sobre a interface entre intimidade e cidade por meio de textos acerca de obras de arte, exposições, dentre outras relíquias de Salvador. Convidamos a todos para um belo passeio pelos cantos, encantos e axé, descobrindo surpresas da nossa querida cidade!
ARTE E URBANIDADE, espaço e subjetividade
Arquiteta e artista plástica, Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia, Doutora em Belas Artes pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Barcelona
Por onde se move a minha imaginação enquanto abro janelas pelas ruas? Eis a pergunta. Posso explicar, mas é só uma tentativa entre tantas outras de tentar apreender o que nos afeta, o que nos constrói.
Na cidade burguesa do século XIX, o espaço público se reformula para atender a novas espacialidades decorrentes da Modernidade, a uma nova ordem de relações entre o indivíduo e o outro, a ascensão da subjetividade como valor, a ideia de privacidade. A rua e outros espaços públicos são locais da alteridade, para os quais determinados comportamentos e formas de vestir são considerados adequados e ritualizados. Contrapõe-se ao espaço privado, refúgio de intimidade.
Na realidade social e econômica brasileira, excludente e desigual, o ideal de cidade burguesa nunca se concretizou verdadeiramente a não ser em alguns espaços centrais e outros privilegiados. Atualmente, nesses mesmos locais, a rua tornou-se apenas um local de passagem para veículos motorizados e pedestres apressados para onde se fecham cada vez mais os espaços privados, vigiados e protegidos por guaritas e câmeras. Nas áreas construídas à margem de parâmetros urbanísticos estabelecidos, e que constituem grande parte da cidade brasileira, o espaço público segue como sempre foi – quase inexistente (SENNET,1988).
Enquanto isso, o espaço virtual posto em evidência na sociedade contemporânea inaugura novos modos de conexões interpessoais e ideias de intimidade, contribuindo para novas relações do sujeito com o espaço real, de todas as modalidades.
Em alguns países, a cidade se reinventa para atrair olhares em uma sociedade altamente informatizada e espetacularizada. Na realidade brasileira, no ambiente urbano degradado e empobrecido visual e socialmente, o espaço público parece encolher-se, reflexo da esfera pública esvaziada, enquanto o território privado se expande e se transforma (esfera da intimidade?).
Mas o que miram os olhos das pessoas nas janelas de seus minúsculos ou grandes e bem-decorados apartamentos? Para onde se dirigem os olhares que se deslocam pela cidade em veículos motorizados? Em qual paisagem está fixada a atenção de alguém sentado na praça do seu bairro?
Grafitar paredes é um gesto de territorialidade quase primitiva que tem a ver com a necessidade de expressão da subjetividade, de identificação com o lugar, de constituição de territorialidades e de contato com o outro.
Barreiras, espaços circunscritos, defesas e dispositivos de segurança tentam se opor aos limites borrados entre o virtual e o físico, entre o íntimo e o social, entre o político e o individual. Os muros, que tornam opacas zonas inteiras da cidade, não são apenas reflexos de uma sociedade constituída de espaços segregados, mas sinais de um sentido de coletividade que se esvai. Em seu peso, ele realiza o mesmo que as janelas virtuais, diáfanas e invisíveis.
O ambiente construído, mesmo sendo parte do adoecimento coletivo, costuma ser ignorado nos consultórios; o mundo permanecendo exterior, como tela de fundo na qual a subjetividade se manifesta (HILLMAN, 1993). E o que dizer do ambiente virtual?
A cidade não é apenas o lugar onde as práticas sociais acontecem, mas uma instância espacial capaz de funcionar como catalisadora ou inibidora de processos sociais, como produtora de imagens, memórias e subjetividades. Nesse sentido, a forma do espaço e suas características, as relações entre partes, os limites, as barreiras, as visualidades – texturas, cores, escalas e tudo o que interfere na vivência do cidadão qualificam e reproduzem experiências, gerando percepções e sentido.
Pintar grafite é abrir uma fenda; é um convite ao olhar viciado em não ver a cidade, é uma forma de diminuir a velocidade do movimento; é uma maneira de criar pontos de exclamação no texto frio e monótono no qual parece ter se transformado a paisagem urbana brasileira.
Estas e algumas questões contemporâneas que relacionam espaço e subjetividade estão subjacentes ao meu fazer artístico. E nesse sentido, cada obra é apenas uma interrogação.