O que dá origem a este trabalho é uma pergunta – qual é o estatuto da intimidade hoje? – e uma afirmação – atualmente assistimos a uma nova transformação da intimidade.
Segundo G. Wajcman, o íntimo é “um lugar de essência arquitetônica e escópica ao mesmo tempo: o espaço onde o sujeito pode permanecer e sentir-se fora do olhar do Outro. Um espaço de exclusão interna (…) onde o sujeito escapa à suposição de ser olhado. É a possibilidade de se esconder”.[2]
O que o sujeito esconde dos outros, mas principalmente de si mesmo, pois ele não quer saber nada sobre isso, é seu gozo, um vacúolo que ele coloca como objeto êxtimo no Outro.
J.-A. Miller nos diz em seu curso Extimidade: “o termo extimidade é construído sobre o termo intimidade. Não é o seu oposto, porque o êxtimo é precisamente o íntimo, inclusive o mais íntimo (…) Esta palavra indica que, no entanto, o mais íntimo está no exterior, que é como um corpo estranho”.[3]
Tanto o íntimo como o êxtimo supõem um lugar, o do Outro, o depositário desse gozo e que garante ao sujeito a possibilidade de um segredo que o envergonhe.
Como diz Miller, a extimidade indica uma fratura da intimidade: ali onde se espera reconhecer o mais próprio, descobre-se outra coisa que agita e que se preferiria extirpar. Atualmente, estamos testemunhando algo mais do que uma fratura da intimidade; assistimos sobretudo à sua anulação.
O avanço das tecnociências e sua produção maciça de gadgets promovem uma exposição de intimidade que não se deve apenas ao olhar onipresente do Outro, mas também à cessão voluntária por parte dos sujeitos de sua intimidade. Como diz Wajcman, há “uma nova raça mutante de Transparentes que chama o olhar para eles, cujo exercício da liberdade consiste precisamente em obter o olhar sobre si mesmo e dar-se a ver. O olhar exterior parece hoje um órgão do próprio corpo, o convoca como um complemento vital”.[4]
O novo Mestre não é mais o intruso que quer interferir em nossos assuntos e diante de quem resistimos, mas um voyeur passivo e difuso do exibicionismo ativo das massas. Wajcman dirá: “A pulsão de ver derroga as fronteiras e o desejo de fazer-se ver é ilimitado. Passamos de Big Brother para Little Brothers”.[5]
O empuxo ao todo da época – ver tudo, dizer tudo – gera “um efeito de coming out universal. O gozo é exibido por todas as partes. (…) há um chamado ao outing. Isto se desdobra em duas vertentes: trata-se, por um lado, de arrancá-lo e, por outro, de exibi-lo. O mundo inteiro é, a partir de agora, um lugar de gozo arrogante”.[6]
Miller nos diz que o perverso busca “a restituição de a ao campo do Outro”[7] na sua cruzada por fazê-lo existir, por devolver-lhe sua consistência, e o faz fazendo nascer em seu campo seu próprio olhar que o completa. A exposição da intimidade, característica da época, busca restituir a um Outro cada vez menos existente?
“O neurótico sofre pela inexistência do Outro (…). O que qualifica o neurótico em sua queixa de neurótico é o que essa extinção do Outro significa para ele – em geral foi-lhe significada em família -, que a tratou com uma identificação”.[8] Porém, se essas identificações vacilam, a forma de hoje fazer existir o Outro se torna cada vez mais perversa?
“E onde está o Outro? A resposta não é que não há mais Outro, resposta angelical que supõe que seríamos todos Iguais (Mêmes) sobre esta terra, que devemos construir um mundo de irmãos: o que ocorre é que o Outro está em todas as partes, difuso, e que tem o mesmo rosto que os iguais (mêmes)”.[9]
Se o Outro está pulverizado em todos os lugares, podemos afirmar que vivemos em uma época de extimidade disseminada e, como sabemos, isso dificulta o laço, já que faz dos outros Inimigos êxtimos.[10]
Perfeitos desconhecidos[11]
Uma reunião entre velhos amigos e suas parcerias. É uma cena atual, os gadgets também são convidados. A anfitriã propõe um jogo: tudo o que acontece nos seus celulares será compartilhado com os demais. Não sem algumas relutâncias, eles aceitam, e os segredos rapidamente se apoderam da cena. Infidelidades, flertes virtuais, convivências insuportáveis, conflitos familiares, com a maternidade, com o casal, com a escolha do parceiro e inclusive com o próprio corpo. Cada alerta que irrompe dos aparelhos delata um pequeno segredo do outro, diante do qual todos ficam escandalizados e, à medida que a noite avança, o ambiente se torna cada vez mais desconfiado. Os laços de amor e amizade que os uniam vão se desgastando até serem cortados. Este é o final em que o empuxo ao gozo comanda.
Mas há um segundo final: o que teria acontecido se eles não jogassem. Neste, a noite termina entre risos e a promessa de um próximo encontro, enquanto cada um vai embora com o seu gozo escondido.
É este final que creio que nos dá uma orientação: diante da inexistência do Outro, a aposta deve ser pelo laço. Para isso a análise deve trabalhar como o lugar íntimo, oculto, de um encontro com o próprio gozo, porém via transferência.
Tradução: Luiza Sarno. Associada do Instituto de Psicanálise da Bahia/Campo freudiano (IPB-BA).