Boa tarde! Agradeço muito especialmente à organização das Jornadas que tem promovido em ato uma conversação ou interlocução entre os Departamentos do ICdeBA, o que raramente acontece.
Coloquei um título experimental a estas notas sobre o escândalo[2], linhas ou ideias que pretendem somente provocar a conversação com a mesa.
Em Enlaces, faz muito tempo, mas especialmente este ano, temos trabalhado sobre o apagamento das bordas, dos limites, das fronteiras, entre outras dimensões ou termos, entre o público e o privado, conduzindo-nos esse problema à pergunta sobre o escândalo; com a alegria, nesta ocasião, de convidar o outro, os outros, a compartilhar a tentativa de responder a esta interrogação, a participar do trabalho.
Assistimos diariamente – e temos trabalhado isso em várias ocasiões, por exemplo, no seminário do Departamento – ao modo como diversos affaires – WikiLeaks, os casos Strauss-Kahn ou Candela, vídeos íntimos difundidos massivamente[3], casos de corrupção altamente midiatizados etc. etc. (a lista pode ser reagrupada praticamente todos os dias) – são rapidamente transformados em “mercadoria” e também, então, muito rapidamente substituídos por outros affaires novos, quer dizer, convertidos em obsoletos, em lixo. As comunicações on-line em tempo real pelas redes sociais e os meios de comunicação de massa – cada vez mais próximos em seu funcionamento à lógica da internet – metamorfoseiam instantaneamente o que aparentemente nasce como escândalo em “espetáculo”.
Se quiséssemos pensar o escândalo no sentido “moderno” – o que justamente parece já não ser suficiente para o que “acontece” hoje –, delimitaríamos ele como algo que passa do íntimo ou do privado – e que deveria permanecer nesse âmbito por sua condição de proibido, transgressor, incorreto para determinada moral, impudico, etc. – para o campo do público, suscitando um efeito de assombro, comoção ou, mais precisamente, de vergonha – própria e/ou alheia. É precisamente o que J.-A. Miller, em “Nota sobre la vergüenza”[4], localizava, na palavra ensinante de Lacan, do modo como o explicita, dizendo que o impudor de um basta para constituir a violação do pudor do outro, o que produziria um efeito de vergonha.
Se tentássemos continuar pensando o escândalo nesses termos, chegaríamos, hoje – e temos nos encontrado com esse obstáculo – a que?… A que, pareceria, que já nada escandaliza.
Deveríamos renovar os termos a partir dos quais pensávamos até há pouco tempo?
Temos lembrado, muitas vezes, referências – pelo menos duas muito conhecidas, já muito utilizadas, porém nem por isso menos vigentes – de, digamos, meados e mais um pouco do século passado. Uma delas, a advertência de Lacan sobre a função ‘envergonhante’ da psicanálise (sempre localizou nossa prática como sintoma da época ou de cada cultura, como subversiva e perturbadora em sua função de acordar o sujeito para seu real, mas particularmente perante o avanço já claramente previsto por Lacan do discurso capitalista). A outra referência, a ata de inscrição cunhada por Guy Debord da “sociedade do espetáculo”, nunca talvez tão realizada como hoje.
Em muitas ocasiões, sem outras elaborações ou orientações para esta questão mais do que alguns textos ou alocuções de Miller, de Éric Laurent – talvez cada vez mais dedicados a esses temas –, também de Mónica Torres – que tem trabalhado muito sobre esse tema, no seminário e em vários números da revista Enlaces – e alguns outros,[5] fomos levados a buscar na sociologia ou na filosofia política, inclusive na mídia, para tentar cernir os fenômenos não somente de nosso tempo, mas também porque cada vez mais fazem parte de nossa clínica.
Nessa direção, só tomarei um detalhe de um livro de Paula Sibilia, A intimidade como espetáculo, no qual coloca o que chama não somente o show, a mostração, mas também a extimidade espetacular do eu. A promoção do eu, você, nós, qualquer pessoa, comum, que exibe sua intimidade em favor de seu “ego”, de ocasionalmente fazer-se um ego[6].
Mostrações subjetivas – sem honra, não representadas pelo valor de algum significante, nada sartrianas, muito menos amantes da honra ao estilo de Vatel – que não se envergonham de encontrar-se, vendo-se a si mesmas reduzidas a objetos na tela do mundo; e Sibilia toma todo tipo de blogs íntimos como exemplo, e relata quando o Times publica sua última edição de dezembro de 2006, sobre a pergunta ‘qual é a personalidade do ano’, e o que coloca na capa de cada exemplar é um espelho, dizendo que a personalidade do ano é… – por meio de cada um encontrar-se no espelho – “você”[7].
Miller releva, desde bem cedo em seu ensino – ainda desde “Função e campo da palavra e da linguagem” –, as objeções que Lacan sempre multiplicou frente às objetivações que a cultura contemporânea tem obrigado o terapeuta ou o intelectual, o pesquisador. Vejam, por exemplo, diz Miller, o que ele apresenta como análise do eu do homem moderno, uma vez que ele saiu do impasse de fazer da bela alma que censura, o curso do mundo enquanto participa dele. De que maneira o descreve? Por um lado, esse homem moderno toma seu lugar no discurso universal, colabora com o avanço da ciência, toma seu lugar como é devido, e ao mesmo tempo, esquece sua subjetividade, esquece sua existência e sua morte. Lacan ainda não falava – diz Miller – “‘olha a televisão’, mas… ‘já quase’”. E mais à frente em Lacan (pois gostaria de voltar e revalorizar nossas referências), dizendo sobre os manifestantes do Maio de 1968: “olhem para eles, como gozam”, e ergo – como acrescenta Miller – gozem olhando para esse reality.
Miller (também em “Nota sobre a vergonha”) interroga, acrescentando a comentários de Éric Laurent sobre o final de O seminário 17: “O que acontece com a psicanálise quando não há mais vergonha, quando a civilização tende a dissolver, a fazer desaparecer a vergonha?”. E define: “a vergonha (Mónica Torres tomou-a em várias ocasiões) tem relação com um outro anterior ao Outro que julga – o da culpa –, um Outro primordial, não que julga mas que apenas vê ou dá a ver”.
Assim, “a culpabilidade está em relação com o desejo enquanto a vergonha está em relação com o gozo que toca o que Lacan chama (por exemplo) em seu Kant com Sade, ‘o mais íntimo do sujeito’”[8].
Lembrei então o que tomamos há pouco com Blanca Sánchez para o seminário de Enlaces, a partir do texto de Gérard Wajcman (publicado em Enlaces 17), “A psicanálise e o direito ao segredo[9], enquanto possibilidade do íntimo, de um espaço para o íntimo. Diz Wajcman, no que denomina a tirania da transparência: “o íntimo do sujeito se encontra fora dele, o mais íntimo é o mais visível, o mais secreto é exibido a todos os olhares e tende a tornar-se público”. Ele sustenta, a partir dessa leitura do atual, o direito à intimidade, ao segredo, a envergonhar-se por um gozo sempre incorreto e castrado, singular no sentido de não globalizável, precisamente por suas marcas sempre únicas.
Proponho, então, a partir dessas notas, duas hipóteses para a conversação e o trabalho:
Uma, seria pensar se hoje o escândalo poderia ser levar o gozo, em certo retorno, a uma extimidade íntima, não exibida, se poderíamos pensar certo escândalo “privado”, singular, um por um, frente a um gozo não espetacularizado.
Nesse sentido, poder-se-ia depreender que esse retorno do escandaloso para a intimidade poderia colocar-se no campo do desejo, ou melhor, do amor, e não tanto no do suposto “puro” ou todo gozo.
Uma segunda hipótese é se justamente a posição da psicanálise (com Lacan, Miller, Laurent, Torres, Wajcman…) deveria orientar-se por envergonhar a impudência, a exibição voyeurista – chula – e “amadora” do eu, nas telas, já mais da webcam que da tevê, para tentar reconduzir um certo gozo, não cínico, mais pudico e menos abjeto, ao campo de uma intimidade não da ordem do inconfessável, muito menos do intransmissível, mas de certo pudor ou posição incauta frente ao impossível de ser exibido. Isso implicará, por sua vez, uma revalorização da palavra e da escuta, de alguma transcendência situada no significante ou no inconsciente (“… espaço – coloca Miller – onde o significante guarda sua dignidade”).
Gérard Wajcman o coloca assim: “E a psicanálise frente a isto (a tirania da transparência, tornar público o íntimo, visível tudo, eclipse do olhar do Outro como portador de vergonha, castrado da possibilidade de provocar vergonha)? É, deveria ser, deveria continuar sendo, o quarto fechado, o lugar íntimo, oculto, de um encontro real, um lugar livre onde se fala da espuma do mundo e sua bolha, um lugar de sombra onde se faz a luz. Para saber. Para, como o dizia Éric Laurent, revelar as mentiras e as ilusões da civilização, e para que cada um, desse modo, consiga arranjar-se um pouco melhor com as desordens do mundo e do gozo”[10].
Pois, como coloca Éric Laurent, “Na análise do discurso, no ato falho, nas falhas do que não se pode dizer e que somente consegue ser mostrado pelo ato sintomático, que é sem dúvida a maneira analítica de mostrar, […] a psicanálise indica o lugar onde o gozo se esconde e fixa o limite ou o horizonte do discurso público”[11].
Pois, como Miller retoma de Lacan em 1968, “há, no entanto, uma vergonha de viver por trás da ausência de vergonha”.
Tradução: Pablo Sauce