Convidada a apresentar uma questão tão vulcânica quanto delicada – o diálogo ruidoso entre a arte e a psicanálise – começo por embaralhar meu próprio lugar de enunciação de tal maneira que não me sinto previamente encaixada em nenhum lugar fixo: assumo minha deriva entre esses territórios como possibilidade de fricção ética.
É preciso lembrar do fundamental: mesmo que os artistas ensinem aos analistas, este é um enunciado que deve ser tomado com prudência pois não se faz análise a partir de uma obra de arte.
Não existe psicanálise aplicada. É a partir deste ponto que abordo 9 Lições Sobre Arte e Psicanálise, livro lançado por J. D. Nasio. A proposta para esta resenha veio de encontro à crítica que pretendo estabelecer. Desde sua criação, a psicanálise tem servido como instrumento para abordar o ato criativo através de uma via que Freud nomeou de sublimação. O termo, todavia, é usado sem o devido rigor, e a arte tem servido, na maioria dos casos, como ilustração para teoria psicanalítica. Lacan, por sua vez, formulou a idéia da criação a partir da presença de um vazio que viria desempenhar uma função inaugural.
O livro inicia deslizando superficialmente pela obra de Maria Callas, num texto sem fecundidade teórica em que proliferam observações deslumbradas e dados biográficos que explicariam sua obra. Acredito que a dimensão biográfica pode ter importância central na obra de um artista, mas desde que possa articular em seu centro a própria dispersão de si.
Em Maria Callas, por exemplo, muito poderia ser estabelecido a partir da relação da voz. Cito Lacan, que fala da pulsão invocante, tema retomado pelo psicanalista francês Jean-Michel Vives de maneira brilhante. Ou Jean-Luc Nancy que em A Escuta empreende uma rigorosa travessia pelo sonoro, sua espessura, vibração e ondulação. Curioso pensar que a psicanálise é, por excelência, o exercício da escuta, mas foi com Nancy que pude aprender melhor sobre essa curiosidade e inquietude, essa ressonância fundamental.
No afã de dar interpretações rápidas e fornecer pílulas psicanalíticas a respeito de Maria Callas, o psicanalista se esquece de ouvir a ética lacaniana de aprender com o artista e escutar o que está em jogo aí, na borda do sentido, nos espaços interior e exterior onde algo ressoa.
O segundo capítulo do livro aborda a pintura de Félix Valloton e enceta equivocadamente uma discussão a partir de uma idéia ingênua de “mergulho no inconsciente”, como se em psicanálise o inconsciente fosse uma espécie de profundeza inacessível que seria agora revelada por uma série de “achismos”. Em psicanálise, fala- se de um sujeito dividido. Ele não deve ser confundido com o sujeito gramatical e nem mesmo com essa instância que é eu (moi), com a qual mantém uma relação de alteridade radical. De uma maneira equivocada, muitas vezes se afirma que essa divisão se faz entre a consciência e o inconsciente, mas o sujeito da psicanálise é um buraco, é lugar vazio. É um lugar de gozo, uma exterioridade lógica e topológica em relação à estrutura da linguagem onde habita, assim como em relação ao próprio corpo que o sustenta.
Trata-se então de um erro grosseiro afirmar que “as características de personalidade” de Vallotton influenciaram diretamente sua obra, estabelecendo assim uma linearidade frágil para algo que não é mensurável. E é preciso reconhecer que na arte há sempre um mais além de uma mera representação direta de si, num perpétuo movimento de reesecrever o lugar do eu pelo seu descentramento e não por uma adesão imaginária identitária. Ademais, há no texto uma série de generalizações grosseiras e românticas, como por exemplo: “Um artista é um homem que enxerga melhor que os outros, mais longe que os outros, pois enxerga a realidade crua e sem véus”.
Colocar o artista como um ser de dons especiais não ajuda a tensionar aquilo que de fato importa, o jogo contraditório do humano que a arte encena, como bem lembrado por Baudelaire, em As Flores do Mal:
Eu sou a ferida e a faca!
Eu sou a bofetada e a cara que apanha!
Eu sou os braços e a roda que tortura,
E a vítima e o carrasco!
A partir daí, talvez, se pudesse adentrar com mais vigor o tema dos retratos em Valloton, pois seus autoretratos parecem ser a centelha que aponta para esse ponto irredutível. É nessa medida que se funda vertiginosamente o tremular do gesto de um artista com sua incomensurável singularidade a incidir em seu trabalho.
No plano ético que rege o diálogo entre arte e psicanálise devemos buscar uma aproximação criteriosa do objeto e, a partir dele, sustentar uma tensão que muitas vezes se apresenta como dissenso. Também é preciso sedimentação teórica, trazer à tona teoria e crítica de arte e pensadores que sustentarão um exercício de filiação e de honestidade intelectual, pois a arte não é uma ilustração rasteira para eixos temáticos e conceitos.
No capítulo seguinte o autor convoca o pintor Francis Bacon ao trazer a obra Cabeça VI para interrogar sobre o grito e a dor e efetivando uma interrogação sobre a origem do som no quadro: oriundo da boca parece ele mesmo esculpir algo do corpo. No entanto, novamente não se convida nenhum autor para a discussão que se encerra aí. Gilles Deleuze, por exemplo, possui um interessante ensaio sobre Bacon, que através da arte toca num caroço do real que habita a carne.
Se há uma relação entre arte e vida ou se podemos sustentar a dimensão daquilo que chamo aqui de “ato biográfico”, ela difere radicalmente da proposta do livro e comparece justamente ao atravessar a fronteira de sentido e encontrar uma escritura “biografemática” como dito por Roland Barthes: a assunção de traços disparadores de escrituras, um modo de lidar com a biografia, sem se limitar à história referenciada. O biógrafo, nesta perspectiva, não narra, de maneira linear, cronológica e coerente a sua própria vida (nem a de ninguém), mas produz vidas.
O íntimo comparece de maneira muito radical e distinta, pois não se trata de uma via única de um interior insondável, mas de uma volta que conecta interior e exterior em um movimento que, ao mesmo tempo em que se escreve a partir de um eu, pode prescindir dele numa abertura de um espaço no qual o artista imprime algo singular no mundo, mas promove uma escritura além do fascínio de sua própria imagem, além de um “si mesmo”, mas não deixando de entrever e assinar aí sua marca.
O final do livro traz o relato de um caso clínico em que figura o quadro A Menina com Pomba, de Picasso. Ali, o psicanalista coloca literalmente a arte no divã relacionando a posição melancólica de sua paciente ao quadro. Não é incomum esse tipo de aproximação, fruto de um pleno desconhecimento dos códigos da arte e do lugar que a arte pode ter de também circunscrever e minimizar o horror do real.
Nesse diálogo é preciso não perder de vista a dobra, que pode exprimir tanto um território subjetivo quanto a instauração de um comum para que o gesto, a memória e intimidade possam reescrever tanto o biográfico como também uma dimensão política da arte, numa nova curvatura que refunda os modos de relação conjugando rigor e vigor e que possa, sobretudo, dar noticias de um eu que é, antes de mais nada, o radical acontecimento da alteridade.