” A consciência do BELO é o que de melhor existe para a elevação dos sentimentos humanos” – Mokiti Okada. (1)
Lacan diz: “O avesso da psicanálise, é o saber dar do artista”. (2) E acrescento com Nadja Turenkko: “tudo que sai do âmago do falasser com desejo de tocar o mundo através de um artifício, é por definição Arte!” (3)
“A função da Arte é a de promover a expansão do imaginário do expectador. E neste sentido a economia de recursos no teatro é a razão da sua riqueza estética e imaginativa.” (4) É o teatro a modalidade de Arte mais próxima da psicanálise, tendo em vista que Freud se reporta à CENA quando trata da questão do consciente e nomeia o inconsciente como uma segunda cena. Mas na Arte da literatura também podemos identificar as marcas da psicanálise diretamente nos relatos clínicos de Freud, descritos como romances, trazendo o nome do personagem principal, como Ana O, Dora, Elizabeth, Hans, Shereber, ou ainda o nome da cena psíquica do fantasma primordial que se constituía na obsessão que marcava a vida do personagem, como o Homem dos Ratos, o Homem dos Lobos, como disse Joel Birman (5). Freud nunca se reportava ou nomeava os diferentes casos clínicos que analisava, segundo o diagnostico da doença que se presentificava.
Mas a psicanálise pelo avesso é o que caracteriza o que constitui o discurso de Lacan em 1966 no texto ” De nossos antecedentes” como uma retomada pelo avesso do projeto freudiano. (6).
Como poderíamos a partir dessa enunciação, entender o avesso da psicanálise relacionado com a questão da Arte?
Em primeiro lugar, penso que o avesso não se opõe ao direito, eles se apresentam em uma junção, que difere do estado ou da posição da Banda de Moebius, em que se transita direito e avesso em uma mesma trajetória. No presente caso só se pode chegar ao direito se não se está na presença do avesso. E nesse sentido tanto Freud quanto Lacan dizem que o Artista precede o Analista. Mas se o avesso da psicanálise, como diz Lacan, é o saber dar do Artista, podemos vislumbrar o fato de que o Artista oferece ao público a sua fragilidade, a sua dor, a sua desestruturação psíquica seja ele neurótico ou psicótico, e essa doação se constitui em uma entrega, seja de beleza ou desconforto, para ser amado e ou acolhido, trata-se de todo modo de uma travessia em publico!
Na psicanálise, essa mesma relação não é de oferta, ela é de demanda, de busca, pela via de uma experiência subjetiva que acontece em um fórum privado aonde o falasser se depara com a sua desarmonia original, os seus erros, angústias, tropeços e confusões na tentativa de constituir pelo menos um laço social para evitar que o narcisismo envelope as suas formas de desejo. O trabalho do analista é passar o gozo ao desejo. E Lacan no Seminário Livro 10 a “Angustia” (7) já dizia que só o Amor pode fazer o gozo condescender ao desejo. Nmu
Com Joel Birman (8) dizemos que o psicanalista é portanto aquele que consegue oferecer ao sujeito que o procura uma nova versão da sua própria historia promovendo uma aventura da qual ele só sabe como começa mas nunca como termina. Lacan nos idos de 1950 diz a Eduard Glover psicanalista inglês, que na psicanalise não se trata de cura mas de uma experiência subjetiva.
No seu Seminário Livro 23 “o Sinthoma”,(9) ele trabalha o caso de Joyce, que embora nunca tenha ido a um analista, foi bem longe com a sua arte, e com ela conseguiu demonstrar o que de jenuíno habita na psicanálise, a relação pura de cada um com alingua. Conseguiu demonstrar que alingua toca em cada um, como uma câmara de eco, que não dá o significado do significante, contingência que é para todos um traumatismo, uma desarmonia original que não pode ser reparada, que não pode ser curada. A hipótese de Lacan é a de que Joyce acolheu o seu sinthoma para fazer uso dele, para fazer dele um produto de sua arte. Os artistas não são loucos, eles são criativos. E em Joyce, o saber do artista consistiu em poder “fazer do traumatismo e de suas conseqüências sofridas com alíngua, uma OBRA”.(10)
A condição para se ser Artista é que se introduza algo novo no código da linguagem e nesse caso podemos nos reportar a Joyce que teve o privilégio de fabricar o seu escabelo com o seu dizer. E o que é de fato um escabelo? No dicionário da língua portuguesa, o escabelo é sinônimo de escano, banco pequeno para descanso dos pés. Para Lacan é “aquilo sobre o qual se eleva o falasser para colocar-se BELO… É a sublimação freudiana em seu entrecruzamento com o narcisismo” (11). Está do lado do gozo da palavra que inclui o sentido, opondo-se ao gozo que exclui o sentido, que é o Sinthome. O gozo opaco do Sinthome “surge da marca que escava a palavra quando adquire o giro do dizer e produz acontecimento no corpo, e Lacan continua: não toda palavra é um dizer . Esse por sua vez é da ordem de um acontecimento, introduz um furo”(12).
Já que a linguagem introduz um furo, o ser falante precisa de uma escabelo, um suplemento para subir na vida. Joyce deu uma consistência lógica ao escabelo, não renunciou a ele, foi até o fim, ou seja, partiu do traumatismo inicial sofrido por alingua, e do acontecimento de corpo que dele resulta, para levá-lo a eternidade.
A última obra trabalhada por Joyce, durante 17 anos, Finnegans Wake, é a obra em que ele estava por excelência decidido a fazer dela o “seu escabelo”. Conceito inédito para uns, transversal para outros e questionado quanto à possibilidade de ser elevado à dignidade de conceito. De todo modo, Lacan introduziu o significante S.K.Belo, escabelo, a partir de James Joyce, como uma gozação, uma versão sardônica, uma ironia maldosa da estética, no mesmo momento em que introduziu os seus parceiros conceituais: Falasser, Corpo falante e Sinthoma, que nascem juntos e são correlatos. A proposta foi fazer do Sinthoma um Escabelo. E no caso de Joyce, o sinthoma como uma suplência do pai, considerando que este era radicalmente carente e não lhe assegurou a conjunção do simbólico com o real, não lhe propiciando referentes aos nomes dos quais ele dispunha.
O Sinthoma, o que fica como resto do sintoma, não significa o fracasso da psicanálise, ao contrário, é o que constitui o seu valor, embora nem sempre se saiba passar como Joyce ao estado de uma obra. Mas é por ai que cada um peca, tropeça, manqueja, e é também o que faz para cada um a sua diferença ou a sua nobreza. Não existe sujeito sem sintoma, por isso não sonhemos e nem tenhamos como ideal somente, simplesmente curar.
O Sinthoma lacaniano é o gozo opaco, a letra, é o que não se lê, o inominável, enquanto o Sintoma freudiano é para se ler, é interpretável, é o envelope formal do Sinthoma. A diferença entre sintoma e sinthoma é que o sinthoma designa precisamente o que do sintoma é rebelde ao inconsciente, o que não representa o sujeito, o que não se presta a nenhum efeito de sentido que possa trazer uma revelação.
Maria Luiza Rangel na sua transmissão sobre o S.K.BELO, registra a passagem do Outro ao Um produzindo um efeito operatório na teoria e na clínica. Diferencia entre Inconsciente freudiano e Falasser. Para Lacan o que se chama de inconsciente é o querer dizer cujo critério sempre tem finalidade significante. No caso do falasser o sentido da interpretação é o gozo. O corpo falante é o inconsciente, enquanto inconsciente o corpo falante é o real.
“S.K.BELO” é portanto o novo nome da sublimação. O escabelo traduz de forma imagética a sublimação freudiana em seu entrecruzamento com o narcisismo. Se origina de um narcisismo, mas de um narcisismo diferente do especular e anterior à produção. É o que estaria dado de entrada, desde o princípio. É como vimos anteriormente um modo de fazer, uma arte, um artifício, como o Passe na Psicanalise que não é uma saída para fora, mas fazer do sintoma uma obra.
(*) Economista, AP, Membro da EBP – Escola Brasileira de Psicanálise e da AMP – Associação Mundial de Psicanálise. Atual Vice-Presidente do Conselho Deliberativo do Instituto de Psicanálise da Bahia, Membro da Comissão Científica da XII JORNADA DA
EBP, Coordenadora Nacional do NIPSAM – Núcleo de Investigação Psicanálise e Saúde Mental em Parceria Institucional com o IPB, de em Belém do Pará e Co-Coordenadora do Núcleo de Investigação de Psicanálise e Saúde Mental.
Endereço Eletrônico: vera.lvsantana@gmail.com
Referências Bibliográficas:
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Okada Mokiti , ” Agricultura Natural, Arte e Sociedade” Coletãnea: Alicerce do Paraíso, Volume 5 – 5a. Edição, São Paulo – 2007.
2) Miller, Jacques Alain in Piezas Sueltas, ” Los Cursos Psicoanalíticos de J. A. M.”, 1a. Edição, Buenos Aires, Paidós, 2013.
3)Turenkko, Nadja Santana – resposta dada em uma entrevista ao site “Literatura Clandestina”, 2012.
4) Freire Filho, Aderbal : “As relações entre arte e a loucura”, – Arte do artistahttp://youtu.be/Zji0SWokokE, 2014.
5) Birman, Joel : “As relações entre arte e a loucura”, – Arte do artistahttp://youtu.be/Zji0SWokokE, 2014.
6) Lacan, Jacques, no Seminário Livro 17, “O Avesso da Psicanálise” – 1969/1970, J. Z. E., Rio de Janeiro, 1992.
7) Lacan, Jacques, no Seminário Livro 10, “A angustia” – 19/19, J. Z. E., Rio de Janeiro, 19.
8) Birman, Joel : “As relações entre arte e a loucura”, – Arte do artistahttp://youtu.be/Zji0SWokokE, 2014.
9) Lacan, Jacques, no Seminário Livro 23, “O sinthome” – 19/19, J. Z. E., Rio de Janeiro, 19.
10) Miller, Jacques Alain in Piezas Sueltas, ” Los Cursos Psicoanalíticos de J. A. M.”, 1a. Edição, Buenos Aires, Paidós, 2013.
11) Miller, Jacques Alain in Piezas Sueltas, ” Los Cursos Psicoanalíticos de J. A. M.”, 1a. Edição, Buenos Aires, Paidós, 2013.
12) Miller, Jacques Alain in Piezas Sueltas, ” Los Cursos Psicoanalíticos de J. A. M.”, 1a. Edição, Buenos Aires, Paidós, 2013