Introdução
Embora os fundamentos da psicanálise sejam freudianos, a perspectiva contemporânea da experiência psicanalítica não é mais a da era de Freud, porque a sua aplicação vem sofrendo mudanças que devemos acompanhar. Uma dessas mudanças é a extensão da psicanálise à saúde mental. Sendo assim, cabe interrogar qual a relação entre a experiência psicanalítica e o que entendemos por saúde mental.
A saúde mental contém, neste nosso contexto uma certa complexidade, pois se por um lado está ligada a inclusão, acolhendo os excluídos socialmente, por outro, paradoxalmente, os exclui do convívio social. Então, colabora com o sistema capitalista, que admite a segregação. Mas não devemos recuar frente ao manejo das diferenças, isto, já nos alertava Lacan ao se referir à psicose, em 1977, por ocasião da Abertura da Seção Clínica, dizendo: “a psicose é aquilo diante do qual, um analista não deve jamais recuar”. A coragem aí evocada está posta para evocar os problemas que a psicose coloca à técnica psicanalítica, visto que sua própria difusão tem como efeito que, cada vez mais, os analistas, se encontram com psicóticos.
Neste sentido, é que devemos, ao falarmos no âmbito institucional, fazer a distinção entre o psicanalista e a psicanálise. O psicanalista é alguém que é colocado neste lugar por um outro que lhe supõe um saber e que lhe faz uma demanda de tratamento. Não há proposta de analistas nestas instituições, mas há um espaço para se enfocar as situações que se apresentam, analiticamente. Então, o que podemos ter é um referencial psicanalítico, transmitido por profissionais da psicanálise, que vão passar sua experiência e receber a experiências de outros profissionais de áreas distintas. Há, aí, troca de saberes.
1 – Psicanálise e saúde mental
A noção central do conceito de saúde mental é de responsabilidade do indivíduo frente à sociedade, tendo sua prática o objetivo de reintegrá-lo à comunidade social. Isso supõe que saúde é sinônimo de normalidade.
O que dizer do conceito de mental? Lacan propõe que definamos o mental como discurso. Discurso em psicanálise é o modo que cada sujeito estabelece suas relações sociais, incluindo a comunicação e o modo que cada um lida com seus pares. Implica, então, a posição subjetiva, ou seja, de que posição cada sujeito enfrenta o mundo. Se seguirmos esta definição, como falar de normalidade do discurso, se este é particular e não universal.
A saúde se define pelo silêncio dos órgãos. O discurso, por sua vez, se ocupa de um sujeito, desde o momento em que ele é concebido no campo da linguagem, havendo o pronunciamento dos órgãos. Lacan afirma que tem algo no mental, no discurso, que é inconsciente, visto que o inconsciente não se cala, não favorece a harmonia, propriedade própria ao imaginário. Essa é sua maneira de identificar inconsciente e mental, justificando que ambos são tecidos de palavras. Isso não acontece sem transtornos, pois a linguagem perturba a adequação do ser vivo ao seu mundo, que não tem nada de natural, na medida em que o universo humano, pode-se dizer por extensão, é estruturado como uma linguagem, o que torna sempre possível os equívocos, os mal-entendidos.
Nesse sentido, em lugar de identificarmos o inconsciente com a saúde mental, seria preferível dizer que ele é a enfermidade mental que está em nós desde o início. Tudo que é mental, para Lacan, se escreve com o nome de sintoma, isto é, que só pode ser escrito a partir do significante, que é uma combinação de som e de sentido, é o material da linguagem, o fio com o qual se tece o discurso. Chega-se, assim, a uma conclusão rigorosa: para a psicanálise o mental é tudo aquilo que depende do significante, isto é, está ligado ao sentido que cada um dá ao que escuta. A princípio parece um paradoxo, mas não é, pois o inconsciente está posto para todos. Há algo que é transmitido em silêncio.
Essas noções nos permitem discutir o conceito de sintoma. Há o sintoma médico cujo modelo é a diabetes, que significa disfunção de um órgão. Há o sintoma social cuja invenção se atribui a Marx e o exemplo é a greve, que significa a resultante de uma tensão entre opostos ou formas de compromisso. O que legitima uma psicanálise é o enfoque de que há um certo tipo de sintoma particular ao sujeito, que consiste em uma enunciação, cuja significação desaparece pela revelação de sua causa. Esses sintomas, embora presentes, são indizíveis, isto é, há um enunciado escrito no sujeito, que ele não sabe.
É com essa noção de sintoma que trabalha a psicanálise e se compreendermos essa leitura, que é diferente da médica e da social, por estar calcada em algo além da consciência, estar calcada nos efeitos de linguagem sobre cada um, poderemos ter uma noção da contribuição da psicanálise em qualquer instituição seja de saúde, educacional, etc.
2 – Psicanálise e diagnóstico
A psicanálise contribui para que percebamos que sempre que estamos diante de algum ser humano, não importa a idade, estamos diante de um sujeito, ou seja, de alguém que tem seus medos, angústias, enfim, seus próprios desejos e é efeito de significante.
O que quero aclarar é que não existe o universal, que cada sujeito deve ser tratado como único. No entanto, temos que estar atentos à particularidade de cada um, o que torna necessário sabermos lidar com as diferenças, mas não massificação, e sim, preservação do particular. Como dar conta disso? Comecemos enfocando a questão diagnostica.
O diagnostico só interessa ao técnico, pois a estigmatização a tal ou qual nomenclatura só deixa o sujeito rotulado e impotente. Entretanto, a avaliação diagnostica é importante para os técnicos, para que eles saibam o que devem fazer com quem está na sua frente e isso vai depender do reconhecimento do que chamamos estrutura.
A princípio temos uma tripartição clássica de estrutura na qual classificamos os sujeitos: neurose, psicose e perversão. Neurose e psicose para a psicanálise, referem-se a estruturas psíquicas que se refletem no social; estruturas de linguagem. Para medicina, neurose é uma doença, mas socialmente aceita, já a psicose é uma doença que leva à exclusão, ou seja, a sociedade a rejeita.
Isto quer dizer que tal nomenclatura é utilizada em vários campos com diferentes enfoques. A psiquiatria, por exemplo, conceitualizou a psicose de uma maneira muito ampla, envolvendo uma série de enfermidades, de causas variadas e definiu-a a partir de critérios preestabelecidos como a incapacidade de adaptação social, a perturbação da capacidade de comunicação, a perda de contato com a realidade, o determinismo orgânico, etc.
A psicanálise nunca se interessou em construir uma classificação tão abrangente. A atenção de Freud desde o início, se voltou para distinção das estruturas clínicas, cujo referencial era fazer uma diferenciação entre patologia e normalidade.
Lacan, entrando na psicanálise pela via da psicose, entendeu que a abordagem da neurose e da psicose estaria relacionada à linguagem e não à patologia. Isto nos leva a entender que a estrutura da qual a psicanálise trata tem uma significação diferente de outros contextos.
O que Lacan utiliza sob o termo estrutura tem a ver com a lingüística, para fazer eqüivaler inconsciente e linguagem, chegando ao axioma “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”.
Assim, a fala é o instrumento. Para a psicanálise a estrutura de linguagem é uma estrutura incompleta, pois, a mesma não contém todos os significantes, o que a faz equívoca. A noção de que a linguagem é incompleta, coloca-nos sempre atrás de algo que nos complete, que nos traga a “felicidade”.
É assim que Lacan toma como ponto nuclear para determinar as estruturas, a entrada na linguagem, no simbólico. Como o sujeito vai lidar com essa falta de significante, com essa falta da completude, é que vai designar se ele é neurótico ou psicótico. Quero dizer que é sempre uma deformação no sistema simbólico o que teremos que escutar.
3- Psicanálise e ética
A concepção que propomos da saúde mental, saúde como normalidade e mental como discurso, o que implica uma certa desarmonia, supõe que o psicanalista se situe em uma posição ética em relação à demanda. Essa posição ética nos confronta com uma questão que tem mais a ver com o que em psicanálise chamamos o desejo do analista, que consiste em visar no enunciado, na fala do sujeito uma enunciação, um “o que isso quer dizer”, deixando ao próprio sujeito a escolha do sentido dessa enunciação. Essa posição ética não implica desejar o bem do sujeito, fazendo da bondade do analista o pivô da técnica. Nessa perspectiva, a questão que se coloca no início da experiência analítica é de que modo responder à demanda de ser paciente, ou seja, como dar as “boas vindas” a essa estrutura que se apresenta, sustentada na posição ética do desejo do analista, que é o que a teoria psicanalítica propõe.
Não se trata mais de antecipar se o sintoma é segregativo ou não e sim, de dar ênfase, a chance desses sujeitos serem trabalhados institucionalmente de acordo com a particularidade de seus sintomas, com a utilização de todo seu potencial. Estamos, então, na ética que rege a teorização da clínica do discurso, única estrutura que de fato existe e que privilegia a linguagem.
Tem muitas práticas que podem se chamar de saúde mental, porque se dedicam à harmonia do mental e do corpo. A psicanálise não está neste rol, pois agrega a esta harmonia, o inconsciente. Portanto, não admite o sintoma como patologia. É porque se baseia no axioma, “o homem é um enfermo da linguagem”, que a psicanálise toma sua orientação em aceitá-lo, a priore, na experiência.
Dessa forma, falar de estrutura, no sentido psicanalítico do termo, quer dizer estar, justamente, na vertente da experiência, da técnica, do “que fazer”. Isto implica que evidenciemos que as questões técnicas são sempre questões éticas, tendo sua explicação no fato de que a experiência se dirige a um sujeito, portanto, à clínica do particular. Algo a ser sublinhado, pois, quando a questão é o sintoma, se tende a nomear o sujeito universalmente, como se o sintoma, o significante que ele representa, constituísse o ser social do sujeito, tendendo-se a fazer uma clínica padronizada, de grupamento de classes.
Esta forma de trabalho nos coloca no plano do sujeito e da demanda, que veicula o desejo. Então, cabe fazer um comentário sobre a demanda feita à uma instituição. Esta, traz no seu bojo uma suposição de saber total à ela. A instituição é suposta poder resolver o problema de quem lhe demanda ajuda, sem que este demandante se implique no pedido que faz.
O psicanalista como tal, não é um trabalhador da saúde mental, apesar do que podemos dizer para justificar esse papel em termos de utilidade social. Ela recebe bem, aceita o sujeito que faz uma demanda. Nesta perspectiva ampla, não há nenhuma dificuldade em incluí-la dentro da prática de saúde mental.
Tal premissa, nos conduz a um novo uso da indicação da análise, não se tratando mais de antecipar se o sintoma é acessível ou não à psicanálise e sim, dar ênfase ao encontro com o psicanalista, se este será útil ou não ao sujeito. Este encontro torna a organização dos ditos viável, articula o sentido bloqueado e consequentemente introduz numa dialética. Se o sentido desemboca numa significação essencial, o analista deve fazer um ponto de basta, que dará ao sujeito condição de alcançar uma sustentação.
Então, podemos formular com Miller, “não há contra-indicação, a priore, à psicanálise, não há contra-indicação ao encontro com o psicanalista”. Esta,é a conseqüência radical de se levar em conta o direito a ser sujeito do sentido.
Não tomemos, pois, uma posição de exclusão e sim de dispostos a encarar a complexa dialética com a saúde mental para assim podermos nos enriquecer nessa troca, sem deixar de estar atentos, que isto nos enfrenta com a verdade de nossa época. Retirado de cena o sujeito universal de quem a política e a ciência tentam dar conta. O que resta? Um horizonte de gozo, frente ao qual não há certeza que a psicanálise possa sobreviver, pois não pode reduzir este campo e muito menos ordená-lo. Lembremos que a palavra é um instrumento que se usa para alcançar algo da ordem do escrito, ou seja, isto que se pode transmitir, em silêncio. O lugar da psicanálise não é nos palcos que possibilitam o gozo universal, e sim, o de ser uma experiência subjetiva pela qual, se é separado do gozo. Façamos uso deste saber.