Que diferença haveria entre o gozo feminino não-todo formulado por Lacan e o empuxo- à -mulher ocorrido na psicose? Colocamos em tensão estes dois termos na perspectiva da clínica do NP, cujo paradigma ajuda a pensar melhor a questão. Lacan considera que o gozo do psicótico evoca o que as mulheres experimentam, mas dele nada podem dizer o que impõe uma diferenciação conceitual. Isto nos obriga a dizer em que essas duas modalidades de gozo diferem. O gozo não-todo excede à função fálica, à castração e é efeito da passagem do sujeito feminino pela metáfora paterna. Este gozo é excedente e não complementar. Mas nem todo excesso de gozo nas mulheres corresponde ao gozo suplementar. Para autoras, analistas mulheres1, o gozo ilimitado na mulher pode ser detectado na clínica2, na perspectiva da devastação ou no arrebatamento, ocasião em que a mulher encarna o objeto da fantasia perversa do homem em vez de semblantizá-lo na via do objeto causa do desejo. A devastação designa os efeitos que o gozo Outro introduz no sujeito feminino e que se desdobram e se dividem entre a abolição subjetiva e a correlativa absolutização do Outro. Miller destaca3 que se, de um lado, o sintoma é a modalidade masculina de gozo, de outro, a devastação é a forma sintomática feminina. A experiência mística é a referência de Lacan para esta modalidade de gozo, cuja aspiração é abolir-se no Outro. O “dar tudo” ao Outro implica uma abolição da própria subjetividade, então “tudo pelo Outro” é gozo não- todo, não regulado como propõe Lacan em O Aturdito4 . O arrebatamento e a devastação constituem formas de absolutização do Outro quando está em foco um parceiro no campo amoroso. Quando uma mulher assegura-se de que “ou é aquele homem ou nada”, o parceiro adquire um poder de Outro absoluto. Capturada, desorienta-se e desregula-se ao ver o parceiro escapar desse lugar impossível. Quanto mais ela absolutiza o Outro, mais o homem tende a sair, já que é confrontado ao com sua castração e sua perda. O resultado diz Miller5 , interpretando Lacan, é a devastação como resposta à erotomania. Disposta a tudo, sem medida, o ser feminino termina por anular o semblante do falo ficando a mercê do sem limite desse gozo. Deixar-se transbordar por um homem é uma posição que a aniquila. Atingir esse ponto tão fora dos limites, que excede à lógica da castração a coloca numa situação de absoluta devastação: ela se desconhece como sujeito; o extravio a faz estranha – assusta-a e a aniquila. Já o arrebatamento é fugaz: o sujeito é tomado por um sentir no corpo; não pode descrever este instante ocorrido a partir do objeto olhar, oriundo de uma contingência. Já não se é a mesma; há uma dessubjetivação prevalecendo o ser de objeto.
Para Dominique Laurent6 na mulher haveria uma espécie de cursor que se desloca da devastação ao arrebatamento e inversamente. A lógica do cursor permite um deslizamento de um ponto a outro como um contínuo. Um homem pode significar um arrebatamento e, em outra ocasião, uma devastação. Isto porque o ser feminino em razão do não-todo, tende a um sem limite, uma desregulação quando o ardor libidinal excede a baliza fálica, pois ela não pode subjetivar o impossível. Já o empuxo- à-mulher que se vincula ao campo das psicoses, é um dos principais signos da foraclusão do NP. Em O Aturdito7 , Lacan aponta a posição sardônica do presidente Schreber na feminização dizendo que esta “se especifica com o primeiro quantificador das fórmulas da sexuação no lado em que ambas estão afetadas por uma negação.” Isso produz uma exceção, que se identifica como A Mulher (não barrada) como concernente à psicose. Daí pode ser entendida a frase de Lacan “O homem só encontra a Mulher na psicose”, enquanto que a fórmula idêntica aplica-se à posição sexual feminina do não-todo, A Mulher (barrada). Se “não existe mulher que não esteja submetida à função fálica” (só Scherer): pode-se escrever desse lado, a psicose que, como exceção faz existir a mulher. Schreber indica que o empuxo- à-mulher surge, quando, no término do trabalho de delírio, se produz a chamada a um gozo sem limites, revelador de uma deficiência da função fálica. A constru- ção do delírio mostra que um efeito de significação não coordenado pelo falo, mas relacionado com a sexuação, teve um efeito resolutivo. Pode-se aproximar o gozo não- todo feminino com o empuxe à mulher no seguinte: O efeito subjetivo e as manifestações desses gozos diferem. Na psicose tem-se, em Schreber, um efeito sardônico, um riso sarcástico quando se destaca o primeiro esboço de uma feminização: ”Miss Schreber”, dizem com escárnio as alucinações verbais. É um fato característico de que escarnecem o sujeito apontando a seu ser de gozo desprovido do limite fálico. Na mulher este gozo é difícil de ser subjetivado, pois não se pode subjetivar o impossível. O gozo não-todo tem na experiência mística uma de suas principais manifestações – um gozo que ultrapassa o limite da linguagem. Na mulher este gozo não pode ser dito, enquanto na psicose ele é expresso claramente em palavras, de forma sarcástica e delirante. A absolutização do Outro é observado na psicose, sem a necessária presença de um parceiro, enquanto que a mulher não prescinde do parceiro em relação ao qual atualiza a devastação primeva com a mãe. O efeito de feminização na psicose possui uma característica muito distinta do gozo suplementar. Na psicose o gozo foracluído é correlacionado a um significante que, embora não sendo o falo, desempenha algumas de suas funções para produzir uma significação delirante. Na mulher, o gozo não-todo está distanciado da referência ao falo, embora se mantendo relativo ao objeto. Na psicose prevalece a metáfora e, no gozo suplementar a metonímia. Finalmente um ponto em comum aos dois é quanto à natureza do objeto. Tanto na mulher como na psicose, o objeto não opera via o semblante, prevalecendo o objeto enquanto real.