James Joyce não foi o único artista louco, mas criou um novo modo de escrita que, como nos lembra Lacan, em Joyce o Sinthoma, propugna o fim da literatura. Fim, ao menos, do modo como a conhecemos, como um escrito que nos mantém dormindo em nossas fantasias. Fato é que não chegamos a este fim, mas também é patente que nenhum outro artista escreve ou escreverá como Joyce. Observe o primeiro parágrafo de Finnegans Wake:
“(…) riverrun, past Eve and Adam’s, from swerve of shore to bend of bay, brings us by a commodius vicus of recirculation back to Howth Castle and Environs” (JOYCE, 2011, pág. 3).[1]
O autor se utiliza de um jogo sonoro onde a simples significação se amplifica possibilitando uma construção polissemântica. Esta é sua metodologia e foi resultado do impacto do som em sua carne (no caso, como ondas do rio). Se quisermos, podemos destacar a radicalidade da invenção joyceana em um neologismo que traduz o impacto de uma “queda”, ressoando ao ser lido em voz alta como o som de um trovão rompendo os ares:
“The fall w(bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhounawnskawntoohoohoorde nenthurnuk!)”. (idem, p. 3)
A singularidade do modo de escrita de Joyce desvela um trabalho do artista e remete-nos à singularidade do próprio Joyce: ao modo como escutava a materialidade dos significantes, como os escandia, os aglutinava, construía e destruía a partir do gozo opaco de alíngua, a partir da ressonância do troumatismo. O mecanismo de formação neológica de Joyce se caracteriza por uma super criação de sentidos sem que se capture com um sentido final o gozo de que se trata ali.
Lacan cerne o singular modo de amarração de Joyce ao propor o seu nó:
É o EGO o ponto de enodamento entre R e S que permitirá manter o I preso em um único nó. O ponto de enodamento se dá no exato ponto onde houve um lapso do nó. Aqui Lacan atesta a função estranha de fazer-se seu nome, seu EGO. Trata-se da invenção de um nome (EGO) que supre a ausência desse corpo. Um nome ao invés de um corpo, e não um nome no lugar do corpo. O nome próprio, aquele do qual se diz “eu”, na neurose, substitui a “materialidade de carne do corpo” em uma junção imaginário-simbólica que o unifica pois, sem ela, seria fragmentado (aqui estamos no campo da esquizofrenia, com o corpo despedaçado) (LACAN, 2007).
Lacan propõe que Joyce não teria um corpo aos moldes do neurótico, mas que seu nome, que não foi transmitido por seu pai (pois há uma Verwerfung neste caso), foi inventado a partir de sua obra de arte. Stanislaus Joyce, em seu livro “Meu Irmão James Joyce“, observa: “Não deixa de ser assombroso que um pai tão débil tenha engendrado um filho com tanta força”. A força de Joyce parte de sua arte, solução singular aos mistérios do corpo falante.
A partir deste ponto, interroguei-me: como Joyce pôde se haver com sua adolescência, diante do enigma do corpo, fonte de gozo, quando não contava com sua solução como Artista? Para isso tomaremos, sobretudo, excertos do próprio Joyce, além de uma verdadeira construção de caso clínico empreendido por Lacan. Inicialmente, cabe aqui frisar, à guisa de introdução, o que Lacan destaca a partir do título de um de seus maiores sucessos editoriais: “The Portrait of the Artist as a Young Man”. Aqui contamos com o artigo definido “o” [the]: O Artista; e não o artigo indefinido, “um” [an] artista. Isso denota a singularidade do artista em questão, ou seja, O próprio Joyce, enquanto singularidade sinthomática.
“O Retrato do Atista…”não é um livro autobiográfico, mas uma narrativa. Joyce, personificado em Stephen, o herói, personagem principal, nos relata uma série de crises ocorridas em sua adolescência, as teorias que pôde construir para dar conta delas, bem como da certeza do seu destino como Artista, correlatas do que ele chama de suas “epifanias”.
Acompanhando sua narrativa, podemos perceber que suas crises começam quando tinha ainda 12 anos (1894), ainda na puberdade, após a apresentação de um trabalho escolar (estudava em um colégio jesuíta). Neste momento é acusado de “herege” e, na saída do colégio, é espancado por um grupo de colegas:
— Em todo o caso, Byron foi um herético e, além disso, um imoral. — Pode ter sido lá o que quisesse — exclamou Stephen desassombradamente. — Quer isso dizer que tanto se te dá, como não, ter ele sido herege? — ponderou Nash. — Que é que você sabe do que está aí a dizer — gritou Stephen. — Você nunca leu uma linha de cousa nenhuma, na sua vida, a não ser traduções. E Boland muito menos! — Mas sei que Byron foi um homem à-toa — reajeitou-se Boland. — Agora, agarrem esse herege! — ordenou, num berro, Heron.
(…)
— Fique muito quieto aí! — berrou Heron, golpeando as pernas de Stephen com a bengala. Era o sinal para o ataque. Nash prendeu-lhe os braços nas costas enquanto Boland apanhava uma tira de palha que estava na sarjeta. Debatendo-se, dando pontapés sob as bengaladas e chicotadas da tira, Stephen foi arremessado contra uma cerca de arame farpado. — Confessa já que Byron não prestava. — Não confesso. — Confessa! — Não confesso. — Confessa! — Não confesso, não confesso. Por fim, depois de se debater furiosamente, conseguiu se desvencilhar. Seus algozes foram-se pela estrada do Jones, rindo e escarnecendo-o, enquanto ele, meio cego pelas lágrimas, tropeçava, segurando os punhos atordoado pela dor e soluçando. Enquanto, agora, estava a repetir o Confiteor no meio da indulgente risada dos seus ouvintes, e as cenas desse malvado episódio passavam ainda agudamente e às pressas diante do seu espírito, perguntava a si mesmo por que não continuava com ódio, agora, desses que o haviam atormentado. Não havia esquecido porção mínima sequer da covardia e crueldade deles; mas recordar isso não lhe causava mais nenhuma raiva. Todas as descrições de amor feroz e de ódio que tinha encontrado nos livros pareciam-lhe doravante inventadas. Mesmo aquela noite em que voltara para casa cambaleando pela estrada do Jones tinha sentido que certa força o houvera despojado dessa súbita onda de raiva tão facilmente como um fruto é despojado de sua mole casca madura. (JOYCE, 1984, p. 63-65)
É curioso destacar que, nesta passagem, não há o desfalecimento de Stephen, ou uma ausência de dores pelo corpo no momento da surra: ao contrário, ele não se esquece de “porção mínima sequer da covardia e crueldade deles”. O que Joyce se despoja, repentinamente, é de sua raiva, de algo que toca e afeta diretamente seu corpo. Este é o momento onde Lacan localiza um desencadeamento (ou, antes, o neo-desencadeamento) de Joyce. Desencadeamento não-completo, pois o lapso ocorrido nos registros R e S os fez permaneceram interpenetrados, inarrebentáveis.
Até este momento, penso que Joyce, ao não contar com uma fantasia fundamental, mantinha-se enodado a partir de uma “santidade” derivada de uma identificação imaginária aos ideias jesuítas. A injúria “herege” recebida, tal como Byron, era-lhe insuportável. Parece-me que foi esta cisão do ser de Joyce ao ideal religioso que contribuiu com o desencadeamento, mais, até mesmo, do que a surra.
Por outro lado, aos 14 anos, seus impulsos sexuais se exacerbam, trazendo consigo a masturbação (“tumulto orgíaco”) como tratamento imediato à tensão do corpo vivo, não-sem a vinda de uma “humilhante sensação de transgressão” – versão mitigada de sua via herética –, onde o sagrado não mais se fazia presente:
“Pouco se lhe dava estar em pecado mortal e que a sua vida crescesse como um tecido de subterfúgio e falsidade. Além do indômito desejo dentro dele de realizar as enormidades que o tentavam, nada mais era sagrado. (…) Só a manhã o atormentava com a sua sombria lembrança de tumulto orgíaco, notificando-lhe a aguda e humilhante sensação de transgressão. Voltou às suas caminhadas errantes”. (idem, p. 75-76).
Também aos 14 anos, Stephen-Joyce tem sua iniciação sexual com uma prostituta, onde surge uma súbita sensação de haver cometido um pecado que põe em questão, de modo radical, sua “santidade“. Narra, como consequência, que a “inquietude corporal, calafrios, e cansaço lhe acoçavam, pondo em fuga seus pensamentos… todo seu ser – memória, vontade, entendimento, carne – estava entumecido e cansado”.
As metamorfoses da puberdade de Joyce realizam verdadeiro empuxo ao encontro com o Outro Sexo, sem que houvesse o recurso de uma fantasia fundamental, de modo que o gozo do corpo não encontrasse cifração, fazendo-o sofrer um desarranjo imaginário: restavam Real e Inconsciente interpenetrados, causando-lhe um enigma irreconciliável.
Como tentativa de restabelecer-se como “saint homme”, passa a tentar criar para si algumas normas bastantes excêntricas. Estas regras impunham a ele uma disciplina para mortificar seus sentidos: ao andar nas ruas, devia manter seus olhos para o chão, não podendo olhar para nenhum outro lugar, sobretudo para os olhos de uma mulher; mortificava o ódio deixando de cantar ou assobiar, não evitando ruídos que lhe causassem irritação, como o afiador de facas; devia se sentar em posições incômodas, dentre outras. Estas defesas poderiam se aproximar, fenomenicamente, de soluções inibitórias neuróticas, porém o que se colocava em primeiro plano foi uma tentativa de dominar o gozo do corpo, que não cessava de não se escrever (GODOY, 2012, RAMÍREZ, 2013).
Mesmo estas normas, que chamava de “dique de ordem e elegância”, não conseguiu conter “o poderoso empuxo de sua maré interior”, pois “as águas haviam saltado sobre as barreiras”. Sua salvação não poderia mais se dar como na sua infância, haveria de criar um modo apenas seu de estabilizar-se. A partir de suas epifanias, surge um caminho: tornar-se um Artista. Para isso, precisaria criar novas concepções estéticas (uma nova Teoria Estética) onde sua heresia pudesse ser assumida paulatinamente. (GODOY, 2012, RAMÍREZ, 2013).
A teoria estética que sustentava o ideal jesuíta era o de São Tomás de Aquino. Nela uma estese deve iluminar como são as coisas; tratava-se de estabelecer os semblantes. Para a Teoria Estética de Joyce, por outro lado, importava o que é o ser, mais aquém dos semblantes. Foi a partir de sua teoria estética, como um modo próprio de aceder à verdade que surgem as epifanias, revelando o ser. Joyce pensou em publicá-las com o título de Stephen Hero (antes ainda de “Retrato do Artista…”), porém este livro não foi publicado à época, reescrevendo-o como “O Retrato do Artista quando Jovem”.
Epifanias, assim como o trabalho de produção do artista são, portanto, dois momentos de seu trabalho sinthomático e permanecerão em tensão até seu último livro publicado em vida, FW. Assim, diante do não cessa de se escrever epifânico, uma defesa, um tratamento para o sem-limite, a partir do trabalho do artista, que cessa de não se escrever (GODOY, 2012).
Seu trabalho de produção, de redação literária, se inicia a partir do que chama “fortificações repentinas”: se atarefava em seus escritos de modo a construir enigmas de uma maneira singular. Nestes momentos também caminhava pelas ruas e parques recebendo impressões, frases que escutava e se repetia até que perdessem o significado, convertendo-se em vocábulos maravilhosos.
Quando uma voz se impunha, acendendo uma “divina vida no cérebro”, lhe agitava o tímpano do ouvido e lhe ordenava a andar. Joyce obedecia ao comando, mas com um passo decidido e inflexível, reunindo juntas palavras e frases sem significado. As epifanias, percebemos, constituía-se por palavras impostas diante das quais o artífice-artesão-artista precisava inventar um saber-fazer com este gozo disruptivo. Ou seja, Joyce tratava seu sintoma com um sinthoma, sem sentido, mas que o maravilhava por seu efeito de apaziguamento. O trabalho artístico trata o lapso do nó a partir da materialidade significante, sem ceder ao sentido, organizando Joyce sem passar pelo corpo (pois o reparo do lapso do nó se dá em R e S). Lacan nos lembra, no Seminário 23, que o S, em questão é o Inconsciente, ligado ao Real (GODOY, 2012).
A partir de então, Joyce radicaliza sua veia herética. Diz: “Não servirei por mais tempo àquele em que não creio, seja minha terra natal, minha pátria ou minha religião”. Ele será aquele que saberá fazer com a linguagem, aquele que sabe qual é a sua missão. A arte compensará, segundo Lacan, a “Verwerfung de fato”, produzida pela carência paterna. Não à toa, assim encerra seu “Retrato do Artista…”:
“Eu vou ao encontro, pela milionésima vez, da realidade da experiência, a fim de moldar, na forja da minha alma, a consciência ainda não criada da minha raça. Velho pai, velho artífice, mantém-me, agora e sempre, em boa forma. (idem, pág. 174)
Percebemos aqui como a adolescência de Joyce também foi um período de invenção à irrupção de um gozo do corpo, sem o recurso da fantasia: do santo da infância chega à puberdade e à adolescência a partir de desestabilizações. As soluções da infância não mais se adequam. É preciso inventar O Artista e safar-se dos perigos da adolescência.