No dia 12.08.2017, o psicanalista Jean Claude Maleval, AP em Rennes, membro da Escola da Causa Freudiana e da AMP, proferiu, na sede da NEL, em Bogotá, uma conferência sobre “A estrutura autística”. Esta conferência, que se traduz como uma ação lacaniana, promovida pelo Observatório da política do autismo, ligado à FAPOL. foi transmitida por skype para as seções de três escolas da América do Sul: EOL – NEL e EBP. Na EBP Bahia, esta transmissão foi viabilizada por uma parceria do Observatório da política do autismo, com a Diretoria Geral e de Biblioteca.
Antes da transmissão ser iniciada foi solicitado a todos os participantes inscritos que assinassem o manifesto, enviado previamente a seus e-mails, contra a lei 13.438, de 26.4.2017, que altera o artigo 14o do Estatuto da Criança e do Adolescente.
A conferência foi iniciada por uma argumentação sobre o título, considerando que a clínica do autismo nos ensina que a clínica é a estrutura, o que nos faz entender que falar da estrutura autística é falar da clínica do autismo. Seguindo, Maleval trouxe a lembrança de que a noção de estrutura subjetiva foi introduzida pelos Lefort, nos anos 80, por ocasião do tratamento de Marie Françoise. Esta noção comporta a noção de espectro, introduzida em 2013, para substituir o termo perturbações.
O desenvolvimento do tema se deu a partir de 3 características propostas para pensar a estrutura autística:
1. Retençãoinicialdosobjetospulsionais
2. Estruturaçãodosujeitoapartirdossignos 3. Aparelhamentodogozopelaborda
A retenção dos objetos pulsionais produz, como consequência, um fenômeno, que é o medo de entrar em contato com o outro social, o que resulta em perturbações da comunicação. Não se opera um aferramento ao Outro porque os primeiros gritos da criança não são interpretados como demandas. Os sentimentos e as sensações, portanto, se formaram isoladamente em função da apropriação solitária da linguagem. Nos anos 80, Lacan vai nos dizer que quando o autista tapa os ouvidos é para se proteger do verbo, pois tudo que o sujeito recebe do Outro não é de uma forma vocal. Isto significa que a linguagem não é a vocalização. Para tornar mais clara esta afirmação, Maleval citou o exemplo de Helen Keller – cega, surda e muda, que conseguiu um diploma universitário – cuja aquisição da linguagem foi táctil. A diferença entre Helen Keller e o sujeito autista, é que este manifesta uma rejeição à aquisição da linguagem em função da retenção dos objetos pulsionais. Nesse sentido a aquisição da linguagem não passa pela articulação significante, o que já aponta para a 2a característica trazida no início, que é: a estruturação do sujeito autista se dá a partir dos signos; de maneira que a articulação das palavras é buscada no mundo exterior. Assim sendo, pode-se notar que autistas de alto nível tem uma correspondência biunívoca entre as palavras e as coisas.
Outra particularidade do autista, referida, foi o pensar em imagens, a exemplo de Temple Grandim. As palavras são transformadas em imagens porque estas são mais confortáveis em função de serem accessíveis a uma apropriação solitária. Para fundamentar, Maleval cita Lacan, em 1961, definindo o signo como aquilo que representa algo para alguém. Diferente do significante, o signo está relacionado com a presença, enquanto o significante está relacionado com uma falta, mais precisamente com a falta-a-ser.
Foi referido também que os autistas apresentam uma surpreendente capacidade de memória, que é explicada por duas vertentes: uma delas é apresentada por Margareth Mahler como o fracasso da repressão, fundamentada na definição freudiana do inconsciente como memória recalcada. A outra vertente diz respeito à definição lacaniana de inconsciente como economia de gozo. O autista cria uma borda para aparelhar o gozo, o que não é um processo voluntário. Chegando aí, Maleval já fez o encadeamento com a 3a característica apresentada para desenvolver o tema. E ele prosseguiu nos fazendo ver que, tanto na perspectiva freudiana quanto na perspectiva lacaniana, os autistas não tem inconsciente. Entretanto marca, evocando os Lefort, que os signos com os quais o autista memoriza são diferentes dos significantes que compõem o inconsciente freudiano, pois são paralisados e não conectados com a vida emocional. Então, enquanto o significante se reporta à articulação, o signo se reporta à imagem. Por isso o equívoco, para os autistas, é um horror.
Como os autistas, em função de não estarem submetidos à articulação significante, tem dificuldades de generalizar, de abstrair, de relativizar, enfim, de construir conceitos, usam como recurso se relacionar com as imagens; isto é, em lugar de articular, somam elementos pouco conectados, o que favorece a memória. A aproximação de signos, pode também produzir fenômenos cinestésicos, enquanto o significante corta o acesso à cinestesia.
Em função das propriedades do signo, a Psicologia Cognitiva valoriza nos autistas a capacidade perceptiva. Maleval fez aí um contraponto, dizendo que tal conexão deixa fora a discussão sobre tudo que no espectro autista se refere à economia de gozo. A notável capacidade de memorizar dos autistas significa um numeroso ordenamento dos signos, porém frágil e pouco organizado. É justamente essa incapacidade de operar a economia de gozo que provoca a retenção dos objetos pulsionais, gerando o recurso de representar, com as imagens, um objeto que seja aparelhado ao gozo.
Para Laurent (1992), o retorno do gozo sobre uma borda é o elemento maior do funcionamento autístico. Aí se insere o que Françoise Tustin chamou de objeto autístico. Vê-se, então, que não se trata do objeto a e sim do objeto perdido. Esta construção levou Maleval a fazer uma distinção fundamental entre o psicótico e o autista. Enquanto o psicótico tem o objeto a no bolso, o autista tem o objeto perdido na mão. Esta distinção inviabiliza a possibilidade de pensar o autismo como um tipo de psicose, o que tem sido fruto de muita discussão nesse campo de estudo.
Os vários exemplos apresentados por Maleval, nos quais não vou me deter, testemunham que os autistas sofrem de solidão e tudo fazem para encontrar-se com o mundo, cada um de acordo com sua singularidade.
Tendo tido a oportunidade de acompanhar o percurso teórico-clínico apresentado por Maleval nesta rica conferência, finalizo esta resenha com a seguinte questão: podemos concluir que, no autista, o imaginário faz suplência ao simbólico?