Posso assegurar tranquilamente que a maior loucura da minha vida foi ter seguido a carreira de artista circense. Quando eu me decidi, não possuía praticamente nenhum argumento racional plausível, apenas uma sensação muito forte que me impelia numa direção diferente de todas as que eu já havia imaginado pra mim, uma intuição ferrenha que não me deixava continuar com o “plano”. Dava medo, tinha muitas possibilidades de dar errado. Ao mesmo tempo, na minha curta vida adulta, eu me sentia livre, clarificado, como se tivessem reiniciado o sistema e toda a programação precisasse ser escrita novamente, numa nova ordem. Com o Circo eu podia me reinventar, me reconhecer e me ressignificar. Tinha me livrado de todas as caixinhas identitárias acumuladas durante a tríade escola-colégio-faculdade. Como quase ninguém tinha escolhido tal carreira, não existiam sábios amigos e familiares para me aconselhar sobre como conduzir minhas escolhas, quais seriam as minhas expectativas e o que eu tinha que fazer para alcançar a felicidade e ser bem sucedido. Estava à beira do abismo, de mala e cuia, confiante e sorridente, pronto pra me jogar no desconhecido, sem a mínima ideia do que me esperava lá embaixo.
Precisamos dispensar uma grande quantidade de energia na forma de intenção, resiliência e persistência, para quebrarmos a força da inércia provocada pela sociedade ocidental em nossa formação como indivíduos. Mesmo no seio da família, a influência midiática dos formadores de opinião e a pressão social dos grupos de convivência estimulam a uniformização do pensamento. Com um sistema educacional de caráter padronizador, desde a primeira infância somos preparados para ser uma engrenagem perfeita e sem atritos na grande máquina do capitalismo. Não se trata de uma opinião, apenas uma constatação dos fatos. Não podemos achar que é uma coisa natural, mas sim encarar este fenômeno como mais uma construção humana, mais uma relação de poder, de controle. O que podemos também é quebrar padrões e desconstruir essa hegemonia, como parte do nosso processo de desenvolvimento consciencial. Também não digo que todos deveriam ser artistas, pois isso não tem lógica nenhuma, ainda mais dentro de um sistema que, querendo ou não, está organizado na forma de classes e ordens de trabalho hierárquicas. Digo sim que é importante questionarmos constantemente a forma como estamos levando nossas vidas, quem somos e porque fazemos o que fazemos. O que nos motiva, quais as nossas intenções e principalmente que mensagens temos para transmitir.
O Circo é uma arte milenar de forte apelo popular. Um universo onírico cheio de sonhos e fantasia, a válvula de escape perfeita para a dura realidade cotidiana dos menos favorecidos. Panis et circensis. Nas pirâmides e templos egípcios, existem hieróglifos que retratam acrobatas e malabaristas em ação. Na China, dizem que certas disciplinas acrobáticas são baseadas em antiquíssimas técnicas de guerra e artes marciais. No Circus Maximus, em Roma, corridas de carruagens e pessoas com habilidades incomuns atraiam milhares de pessoas em imensos anfiteatros. Todos estamos familiarizados com a imagem dos saltimbancos se apresentando nas feiras e praças medievais. Imagino que no início o Circo era apenas uma vontade enorme e incontrolável de se manifestar através do corpo um “algo” que transcendesse a personalidade individual, representando e exprimindo um certo desejo mais coletivo, mais profundo, mais ancestral. Ou não seriam os atletas gregos a imagem mais próxima de que podemos chegar dos Deuses do Olimpo?
Contudo, a história do Circo não é feita somente de glórias e flores. Ao longo do tempo, ele incorporou diversas formas de organização social, como o militarismo dos cavaleiros ingleses em suas exibições equestres, o patriarcado das antigas trupes nômades do oriente e a hierarquização capitalista de suas funções, centralizada na figura do dono do circo. Este, muitas vezes, atuava como o domador de feras exóticas (bela metáfora, não?) de terras longínquas, a serem domesticadas em cativeiro para entreter o público pagante, mostrando a força e supremacia do homem civilizado. Outra incorporação interessante aconteceu na América com o aclamado freak show, onde supostas aberrações da natureza, geralmente homens e mulheres com anomalias genéticas e doenças raríssimas, eram colocadas em vitrines de exposição, condição essa imortalizada no clássico filme de David Lynch “The Elephant Man”, de 1980.
Hoje em dia, a arte possui uma função claramente terapêutica na minha vida. Através da linguagem circense, busco transpor as minhas loucuras interiores para o palco, expondo os meus processos de transformação, questões egóicas, medos e anseios, toda a profundidade da minha psique. Dando vida a personagens e situações arquetípicas, exponho meus pontos de vista e exorcizo meus fantasmas pessoais, descobrindo e incorporando a cada vivência partes escondidas de minha personalidade. Ainda, junto com meu amigo e sócio Flávio Falcone, a Cia da Pegada busca questionar as relações de poder em nossa sociedade, o autoritarismo e a falta de liberdade de expressão. Nos apropriamos do contexto do Circo e de suas principais figuras para discutir questões de gênero, machismo e o papel das mulheres na sociedade. Acreditamos que o riso é a ferramenta de comunicação por excelência, onde assuntos complexos e tabus podem ser abordados de forma leve e construtiva, sendo o palhaço o embaixador unânime das grandes verdades universais. Filosofia de vida, profissão, função social, loucura ? Apenas tentativas reducionistas de definir o indefinível, de classificar o inclassificável, de colocar em palavras o que pode ser apenas sentido. Que loucura, não?