Nos últimos anos de seu ensino, Jacques Lacan tece novas perspectivas para uma clínica do real. Surge desse ensino uma nova perspectiva para a arte. Se, no Seminário da Ética, o Belo era a última barreira antes do pior, no Seminário 23 a arte pode surgir como “sinthomatização” que nos permite enodar os registros de nossa existência. Diante do insensato, a arte pode fazer suplência ao que faz furo no simbólico, a saber: a morte e a perda. Névoa e Assobio, da psicanalista Bianca Dias, é um delicado e quase diáfano tratamento do real de uma perda, é fazer escritura com o que não cessa de não se escrever. É desse encontro com o impossível que partiu o interesse do Boletim Cronicid@des por essa obra.
Marcelo Veras: Como surgiu a ideia de escrever Névoa e Assobio?
Bianca Dias: “Névoa e assobio” é da ordem do milagre: inexplicavelmente me levantava da cama e escrevia, todos os dias, algo sobre Caetano – um filho que fez sua inscrição em mim para me deixar cinco dias após ter nascido. Era algo que eu não sabia que viria a ser um livro. Havia no meio daquela tristeza um pressentimento de beleza eterna que eu poderia extrair da dor dilacerante. Queria conservar na escrita a experiência mística que pude acessar, precisava enfrentar o aspecto aterrador do acontecimento e sentia que, ao escrever sobre o horror inominável de perder um filho em condições absolutamente dramáticas, algo me conduzia paradoxalmente para uma espécie de extravio, um deslizamento para além da morte. Fala-se muito de um “esforço de poesia”, mas isto só pode verdadeiramente acontecer quando se sente no corpo que a própria vida é colocada em risco. Sentia que compunha uma paisagem nesta travessia e escrevia todos os dias ao longo do primeiro ano. Um dia, Arthur Dapieve e Zuenir Ventura, amigos para quem mandava notícias através de e-mails, me disseram que eu deveria publicar. Então me lembrei de um livro que havia lido e tinha me marcado de maneira irremediável – “O ano do pensamento mágico” de Joan Didion – que começava assim : “A vida se transforma rapidamente. A vida muda num instante. Você se senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente”. Conhecia seu trabalho anterior com a escrita e achei bonito e potente que uma ensaísta brilhante se dedicasse a escrever sobre uma experiência radical e que pode transmitir o essencial da vida. Na época ela havia perdido o seu marido, o grande amor com quem passou a vida, e enfrentava uma grave doença da filha que chegou em seguida. Havia ali uma dignidade que me deixou impressionada.
MV: O livro foi um trabalho de luto? Você pode dizer que mudou sua posição diante da perda após a escrita?
BD: Eu escrevia no auge de uma dor e de um mistério ainda cambaleante, me segurando nas palavras. Certamente este livro se configura como uma travessia, como um trabalho de luto e a escrita surge como um meio instável e precário de introduzir alguma ordem, como uma maneira de me rodear de um silêncio necessário. Escrever e colher flores num campo minado, escrever para além da decifração e amando de maneira obstinada o não-sentido. Lembrava-me de Herberto Helder, poeta português que me acompanha sempre: “Já sei que a minha força está em saber manejar a minha fraqueza. Sou hoje uma espécie de campeão nesta estranha ginástica. Estou em ressureição lenta”
MV:Quais são seus próximos planos? Qual sua visão do futuro?
BD: Acredito nas utopias. Assim como Edson Luiz André de Souza, um psicanalista que admiro, creio que a utopia tem muito mais uma dimensão de subtração de um excesso de imagens e de sentido – exatamente como na interpretação psicanalítica, suspendendo as certezas do sujeito – do que de prescrição de novos códigos de conduta e projetos de felicidade.
Ainda não sei o que poderá advir da finalização do luto atravessado neste livro, mas certamente um filho não é e nunca foi um imperativo. O desejo que vive aí é menos uma decisão e mais uma divisão que me mobiliza e permite ao tempo trabalhar. A maneira radical como Caetano entrou na minha vida e nela permaneceu, como possibilidade de fazer com aquilo que se pode perder e daí extrair uma dignidade que está longe de qualquer tentativa de substituição: é o que permanece. Sabemos bem que toda a parafernália capitalista e a ciência ao redor da superação é opaca ao vivo e pulsante do desejo. Penso que há uma ferida incontornável e uma dimensão, justamente, do insuperável. Não se trata de passar por cima disso e encontrar uma solução sintomática protocolar e lugar comum: basta colocar outro filho no lugar e tudo se supera. Aposto numa ultrapassagem que guarda a ferida como uma marca preciosa, possibilidade que creio ser menos melancólica.
E, se acredito nas utopias, acredito na criação e na possibilidade do novo. Sou uma lacaniana apaixonada em igual medida por Walter Benjamin: “Que as coisas continuem como antes, eis a catástrofe”. A crença na utopia faz com que eu caminhe do íntimo ao político e faz também vicejar meu desejo de resistência junto ao outro. Vivemos um momento cruel, autoritário, dogmático. A utopia que me interessa não é aquela que sabemos, mas a que ainda não sabemos e precisamos inventar.
Edson Luiz cita Roger Dadoun, para quem podemos inverter o sentido do vetor de como usualmente se pensa a utopia e pensá-la como um movimento que vai do futuro ao passado, numa correnteza contra a realidade. A utopia adquire aqui sua virtude de crítica social. E, aqui, meu futuro e meus planos encontram um solo: a psicanálise também como instrumento crítico. Não por acaso minha relação com a arte – que data desde a infância – foi se solidificando a ponto de ser indiscernível da minha relação com a psicanálise. Sou ensaísta, escrevo textos e críticas para revistas e outras publicações, acompanho o trabalho de artistas, com quem produzo catálogos, exposições e seminários, ministro cursos e palestras. Estudei teoria e crítica, fundei um núcleo de psicanálise e arte junto ao Instituto Figueiredo Ferraz que funcionou durante quase quatro anos em parceria com o Clin-a, me especializei em história da arte pela FAAP, enveredei pela pesquisa acadêmica na Universidade Federal Fluminense e pude colocar algo do meu estilo aí, justamente pela fineza e agudeza que me foram concedidas pela análise pessoal e por uma formação heterodoxa e atravessada pelo cinema, pela literatura, pela filosofia, pela poesia. Creio que é este fazer – que vacila entre o dentro e o fora, mas é marcado por uma espécie de ferocidade desejante – que me levará ao amanhã. E sei que o amanhã nos acossa. Temos medo quando não sabemos. Para nos defendermos, não precisamos muito: basta insistir na lógica do ontem insuflada pelas formas instituídas. Criar é abrir descontinuidades, interrupções nesse fluxo do mesmo. Isto é o que encontro na tensão proposta criticamente pela psicanálise e pela arte. Seguirei curiosa e inventando. Não há revolta sem a alegria da invenção e o entusiasmo de compartilhar com o outro, e sem apostar em qualquer coisa que nos conduza além da obscenidade e da barbárie.