Durante a V Semana do Autismo – NEL, Jean-Claude Maleval (2017) apresentou uma tese em sua Conferência sobre a entrada do sujeito autista na linguagem pelo signo, e não pelo significante:
“Alíngua, essa pura materialidade significante, livre de toda significação e particularmente apropriada para cifrar o gozo, não chegou a estender suas raízes no corpo do autista. No entanto, é indiscutível que ele está submetido ao banho de linguagem, e que às vezes consegue se apropriar desta com uma grande competência”.
Esta tese abre um campo de estudo muito importante neste momento, em que uma nova lei brasileira surge, a lei 13.438:
“§ 5º É obrigatória a aplicação a todas as crianças, nos seus primeiros dezoito meses de vida, de protocolo ou outro instrumento construído com a finalidade de facilitar a detecção, em consulta pediátrica de acompanhamento da criança, de risco para o seu desenvolvimento psíquico.”
Com essa lei, todas as crianças serão avaliadas e etiquetadas com classificações diagnósticas. Sabemos da importância do tratamento nas psicoses e autismos pr
ecoces e que se trata de uma “insondável decisão do ser” diante do encontro, sempre traumático, com a linguagem. Por isso, a complexidade, mais ainda, o perigo da proposta de “detectar o risco para o desenvolvimento psíquico”, uma vez que esta ignora a “insondável decisão” e a própria contingência do encontro.
Neste sentido, é orientadora a leitura dos Seminários e Escritos de Lacan porque, desde o início de seu ensino, ele aponta para a direção do real, em sua articulação com o simbólico e o imaginário.
Nos anos 50, ele circunscreve questões importantes sobre as psicoses infantis. No Seminário 2, apresentado na época em que a psicose da criança era descrita como debilidade mental, ele diz:
“De certa maneira, não se sabe se é uma boa empregar a mesma palavra para as psicoses na criança e no adulto. Durante décadas, recusava-se a pensar que pudesse haver na criança verdadeiras psicoses – procurava-se vincular os fenômenos a certas condições orgânicas. A psicose não é estrutural, de jeito nenhum, da mesma maneira na criança e no adulto. Se falamos legitimamente de psicoses na criança, é porque, como analistas, podemos dar um passo além dos outros na concepção da psicose” (p.134).
Lacan se refere à criança como um sujeito que tomou uma posição diante do saber e da loucura, e no Seminário 3 e no texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, ele apresenta sua leitura sobre o Édipo freudiano: a metáfora paterna, considerando a existência de algo que o significante não recobre. Mais tarde, propõe a pluralização do Nome do Pai, as inúmeras possibilidades de amarração dos registros e as invenções singulares do ser falante.
Nos anos 50, os tratamentos psicanalíticos das psicoses se multiplicaram. Laurent (2003) ressalta que o kleinismo divulgava em suas publicações o tratamento das psicoses em crianças e adultos incidindo sobre a unidade imaginária do corpo. Com relação ao lugar do analista, Laurent considera que “por não haver transferência paterna, nem por isso o problema é tomar-se por mães ou irmãos. Trata-se de ver que o que está em questão é a relação do sujeito com a própria língua”.
A definição de Lacan (1972-73) sobre alíngua e a relação desta com a linguagem abre uma via de trabalho com os autismos quando o “Outro não existe” (Lefort, 1980), para além do Édipo e da metáfora paterna, no tempo do declínio do simbólico. É nesta via que seguem Laurent e Maleval.
Lacan (1972-73) esclarece que “a linguagem não é somente comunicação” (p.190) e que alíngua não visa a comunicação e se encontra aquém da linguagem. Alíngua é prévia à linguagem e esta, “uma elucubração de saber sobre alíngua” (p.190).
Ao longo de seu ensino, Lacan juntou o campo da linguagem com o estatuto de alíngua porque, segundo Miller (1998), ele se deu conta de que a palavra pode ser pensada como gozo. O resultado desta mudança de axioma é a passagem da problemática do Outro para a do Um, inclusive do S1. O significante não tem somente uma função de mensagem, mas de gozo. Portanto, não se reduz a sua articulação com o S2, uma vez que há o Um sozinho. Nas palavras de Miller (1998):
“Não é o mesmo tentar alcançar o Um a partir do Outro, que tentar alcançar o Outro a partir do Um. […] Pois bem, neste novo axioma o prévio não é o Outro, senão o gozo e, por conseguinte, o Um, a posição do Um, a tese do Um” (p.343).
Alíngua e o simbólico se constituem de S1 e na elucubração de saber é preciso produzir S2, ou seja, colocar os S1 em cadeia para se estabelecer um discurso – questão crucial nas psicoses e nos autismos.
“O problema agora é como passar desse Um do gozo e de alíngua ao Outro, quer seja o outro da linguagem ou o a do mais de gozar” (p.359). Como fazer dois (deux), deles (d’eux)? Como os S1 se articulam? Alíngua se ordena somente se um significante assume o valor de outro, de ser dois. “Quando este problema se resolve, nasce a estrutura” (p.360), por isso Miller considera que os Lefort escolheram bem o título do primeiro livro: “Nascimento do Outro”. Eles partiram do Um e o Outro se tornou o problema.
“As crianças do Um sozinho” é o título de um trabalho apresentado por Esthela Solano em que desenvolve o tema da psicose infantil, em particular, os autismos. Solano (1987) propôs esta expressão para o sujeito que se coloca fora do discurso e não fala, embora esteja na estrutura da linguagem. E quando fala, não se dirige ao outro: como os “planetas”, ele “tem a compacidade de um ser-aí, como uma estrela” (p.46).
É neste sentido que Stiglitz (2010) teceu um comentário sobre as crianças do Um sozinho descritas por Solano: o Um sozinho era o S1 que permanecia não articulado no autismo e na psicose precoces devido à foraclusão do Nome-do-Pai. Stiglitz aponta que a clínica da foraclusão generalizada também está cheia de crianças do Um sozinho. Podemos acrescentar com a leitura dos Leforts e a partir do Seminário 23 de Lacan, sobre o Sinthoma, que se trata do Um sem o Outro. O S1 sozinho, sem o S2, elucida a solidão nos autismos. “Um traço de estrutura do autismo é chegar ao isolamento de Thanatos, um real insuportável” (p.225), sustentam os Lefort (1998).
Assim, substituindo com maiúsculo o Um de gozo na preciosa expressão de Solano, escrevo “as crianças do Um sozinho” para ressaltar que alíngua e linguagem são uma rica e possível via de trabalho com as crianças autistas hoje. Via que segue outra direção que não a das normas e tentativas higienistas de prevenção de saúde e de risco de problemas de desenvolvimento, e que considera o ser falante – desde a pequena “estrela” na madrugada da vida – com seu modo singular de responder ao trauma da língua.
Ao final da Jornada organizada por Maud Mannoni (1968), Lacan proferiu a célebre “Alocução sobre as psicoses da criança”, colocando a liberdade no centro da questão que entrelaça a criança, a psicose e a instituição. Sua crítica aos analistas ingleses é que esta questão foi desenvolvida durante a apresentação dos trabalhos em “uma perspectiva meio estreita” (p.360): os autores não articularam a clínica com a teoria a respeito da relação sexual, do inconsciente e do gozo.
“Será que essa liberdade, suscitada, sugerida por uma certa prática dirigida a estes sujeitos, não traz em si seu limite e seu engodo?” – ele pergunta, afirmando o valor da psicanálise em operar com a fantasia e o gozo, enquanto o progresso da ciência tende à segregação.
Essa pergunta ecoa hoje com esta nova lei. Que futuro para os bebês que sairão das maternidades etiquetados? Que uso se fará disso?