Ao receber o convite para escrever sobre o tema do autismo, não pude deixar de me reportar às brilhantes formulações contidas no livro A batalha do autismo de Éric Laurent.
O autismo pode ser considerado como um dos nomes do mal-estar contemporâneo. Diante do enigma que envolve essa categoria, pais, educadores, diretores de escola se arriscam a nomear a causa, identificar o quadro e diagnosticar. Desde a publicação do DSM-IV, em 1994, o número de casos ligados ao autismo cresce em ritmo epidêmico. Na perspectiva do DSM-5, o autismo é transformado em espectro: são os conhecidos Transtornos do Espectro do Autismo (TEA). Laurent salienta que a ampliação desse espectro é tão absurda que a quantidade de sujeitos afetados multiplicou-se por dez em apenas vinte anos, até atingir a frequência de uma criança em cada cem, e esse número cresce se incluirmos nesse espectro aqueles ditos “não especificados”. Nesse ritmo, especialistas já calculam que uma criança, em cada cinquenta, logo será considerada autista.
Por mais paradoxal que pareça, não há tratamento farmacológico correspondente a essa categoria, mas, na prática, os psiquiatras medicam crianças autistas da mesma maneira que as crianças psicóticas. Isso gera um problema com a ética médica que se sente obrigada a encontrar uma solução e algum tipo de medicação para o sujeito autista. Laurent ressalta que as últimas pesquisas para inventar um medicamento basearam-se na dissimetria de prevalência do autismo entre meninos e meninas: quatro autistas em cada cinco são homens. Ressaltamos que o pacote da medicalização para tratamento do sintoma autista sugere tomar o autismo como uma enfermidade, e não como um “funcionamento subjetivo singular”. Se os medicamentos não curam, é porque o significante autismo não remete a uma doença.
Diante desse contexto tão crítico, os métodos comportamentais, baseados na aprendizagem repetitiva de condutas predefinidas, vieram encarnar o engodo que o modelo “problema-solução” constitui. Conforme o autor, a batalha do autismo remete ao modo como os partidários de uma linha cientificista querem instrumentalizar os resultados obtidos pela biologia para invalidar qualquer abordagem inspirada na psicanálise. Em nome da crença de que o autismo seria um “transtorno” puramente cognitivo, somente os métodos educativos seriam aceitáveis. No entanto, é crucial manter, tanto para os pais quanto para os autistas, uma pluralidade de abordagens. A batalha é uma batalha pelo respeito à diversidade. Trata-se de uma batalha para definir e acolher a perturbação da relação com o Outro que se impõe no autismo, diferente em cada sujeito.
Ao contrário do que afirma a circular de 2005, a psicanálise não “culpabilizou os pais”. Laurent destaca que os psicanalistas já se livraram há um bom tempo da absurda hipótese de que o autismo seria culpa dos pais e, especialmente, das mães. A ideia do trauma como contingência libera a psicanálise da pergunta sobre a causa e de atribuir aos pais a culpa pela causalidade do autismo. O trauma para a psicanálise provém do modo como cada um goza da língua materna criando seu dialeto singular, chamado por Lacan de alíngua. Não dá para sondar o que leva uma criança muito nova a tomar a decisão de se fazer sem o Outro, como é o caso do autismo. Muitas vezes, ali onde deveria haver um encontro com o olhar do Outro, ocorreu um desencontro, impossibilitando a criança de dar significação à presença do Outro. Laurent enfatiza que, desde os Lefort, não há no autismo especularidade nem divisão do sujeito, há um duplo que o autista encontra, e a presença deste vem junto com a destruição, e é aí que reside o perigo.
Os autistas não permitem que um diálogo prossiga se o outro só se autoriza pela identificação histérica. Nessa direção, o autor faz um alerta: quem quer ser parceiro desses sujeitos, há um luto a fazer da identificação histérica. Assim, cada analista tem de ter atravessado o ponto desse modo identificatório para se ater ao pedaço de real em jogo no autismo.