1) CRONICID@DES: Uma nova lei (2017) está surgindo: a lei 13.438, que determina o seguinte: “É obrigatória a aplicação a todas as crianças, nos seus primeiros dezoito meses de vida, de protocolo ou outro instrumento construído com a finalidade de facilitar a detecção, em consulta pediátrica de acompanhamento da criança, de risco para o seu desenvolvimento psíquico”. Você concorda que esta lei, menos do que propor uma precocidade no tratamento psíquico infantil – haja vista o desmonte dos serviços de Saúde Pública no Brasil – retira das crianças e suas famílias a autonomia para lidar com suas dificuldades, desconsidera fatores sociais na constituição dos sujeitos e promove a patologização de sinais que podem ser circunstanciais?
Eu trabalho também com bebês e seus cuidadores há 25 anos, e sei que ninguém pode ir contra a ideia de que urge pensarmos estratégias para a detecção e atendimento nos primeiros anos de vida quando há sofrimento no bebê. Então qual seria o problema? Não podemos confundir o não adiamento de atendimentos a um bebê e seus cuidadores quando eles precisam, com a obrigatoriedade da aplicação de protocolos em TODOS os bebês nascidos em território nacional.
São vários os problemas que podem ser promovidos pela obrigatoriedade da aplicação de protocolos para detectar risco psíquico em bebês de 0 a 18 meses. Este sendo um momento de muita sensibilidade e pouca especificidade, o risco de patologização e medicalização são enormes. Há também um grande risco de judicialização, tanto da saúde, quanto dos profissionais. Nos dias 28 e 29 de setembro o Ministério da Saúde reuniu entidades da sociedade civil e especialistas para discutir a Política de Saúde da criança no contexto dessa lei, reunião na qual eu estive presente. Foi um momento muito importante e como não poderia ser diferente, houve quase que unanimidade sobre a iatrogenia dessa lei para os bebês e seus familiares. Então, depois de dois intensos dias de trabalho, chegou-se a alguns consensos:
- A afirmação consensual de que o instrumento mais completo para acompanhamento do desenvolvimento integral de bebês de zero a dezoito meses é a Caderneta de Saúde da Criança (CSC), posto ser um documento universal, de vigilância do pleno desenvolvimento do bebê e da criança, direito de toda criança brasileira, que reúne o registro dos mais importantes eventos relacionados à saúde infantil, consideradas as diferentes dimensões de crescimento e desenvolvimento, dentre as quais a dimensão psíquica;
- A necessidade de expansão e qualificação dos diferentes serviços e estratégias da Atenção Básica em Saúde, em especial as ações interdisciplinares e multiprofissionais de puericultura em parceria com os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF); da Rede de Atenção Psicossocial, em especial dos Centros de Atenção Psicossocial infanto-juvenis (CAPSi) e CAPS I; e da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência, em especial dos Centros Especializados em Reabilitação (CER);
- A unânime solicitação de ampliação urgente dos investimentos em educação permanente para profissionais da Atenção Básica e das diferentes áreas do SUS, com base na integralidade do cuidado e na Promoção de Saúde/Saúde Mental, e a partir da montagem de ações estratégicas como, por exemplo, a proposição de um Programa de Educação pelo Trabalho sobre Primeira Infância (PET Primeira Infância), dentre outros mecanismos públicos de formação pertinentes às diferentes realidades municipais/estaduais;
- Demanda de que a utilização de qualquer outro instrumento ou protocolo complementar à Caderneta de Saúde da Criança (CSC) deve ficar condicionado à emissão de parecer favorável da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC);
Além de deliberação importante: a solicitação de todas as entidades presentes para que o Ministério da Saúde empenhe esforços para viabilizar a anulação/revogação da Lei 13.438/2017. Esta solicitação teve como base os pareceres contrários à lei emitidos pelo próprio MS, e o conjunto de argumentos consubstanciados pelas entidades durante a reunião.
2) CRONICID@DES: Como você pensa as relações entre psicose e autismo? Sabemos que há posições distintas entre os teóricos que lidam com os autismos. Deste modo, CRONICID@DES quer saber sua opinião.
Essa pergunta é muito ampla e desculpem a limitação da resposta, mereceria um debate mais encorpado com certeza. Mas vamos lá! A clínica me mostra que são duas posições distintas em relação ao gozo, ao laço com o Outro, ao enodamento real, simbólico e imaginário. A direção do tratamento, portanto, também é muito distinta! O analista com um paciente com autismo precisará se fazer presente, mesmo fazendo um cálculo sobre as invasões possíveis de suas intervenções, em alguns momentos são intervenções imprescindíveis para ir furando a bolha autística (vejam a resposta seguinte). Enquanto que na psicose, o analista precisa estar num lugar menos interventivo, seu manejo será o de “desinchar” suas intervenções, de ser econômico em suas intervenções, de secretariar o seu paciente que fala, associa, e, mesmo sem necessariamente haver uma transferência de saber, ele desde o inicio quer falar para alguém. Com o autismo é bem diferente a direção do tratamento, e não é à toa que ocorre de forma diferente, é porque são posições distintas. No autismo, eu diria que o Erro (ou lapsus) na estrutura dos três registros, está muito mais do lado do imaginário, que certamente afeta o simbólico, e o real é o registro mais proeminente. Já na psicose, o Erro (ou lapsus) está muito mais no registro simbólico, que afetará profundamente o imaginário, com efeitos de real que retornam para os outros dois registros.
3) CRONICID@DES: A psicanálise propõe que se trate os autistas respeitando seus interesses, seus objetos preferidos e sua singularidade. Como você entende que isto seja possível? Como estabelecer vínculos transferenciais nesta clínica?
Por essa razão, acredito que a cadeia borromeana, como estrutura única, precisa ser pensada caso a caso, sem precisar de uma universalização de estruturas, pois desse modo estaríamos mais uma vez reduzindo a psicanálise às nomeações das categorias psiquiátricas, psicose, neurose, perversão, e como alguns insistem, o autismo. A clínica psicanalítica tem algo muito caro a nos ensinar: o sujeito é único. No caso do autismo, é caro porque o apelo do campo social para se falar do autismo como entidade nosográfica, portanto, universal, é grande.
Uma especificidade que essa clínica tem me ensinado é que há um tempo inicial do trabalho muito importante e longo a ser feito: a pessoa do analista precisa começar a fazer parte do psiquismo de seu paciente. Para alcançar essa direção, inicialmente é o analista quem demanda na sessão com seu paciente, pois é ele quem fala, e como nos diz Lacan: o que fazemos ao falar, é demandar. Nesse tempo inicial é o analista quem fala, quem demanda, consequentemente é ele quem oferece seu corpo, suas palavras, seu olhar. Mas isso é feito com uma direção: para que haja, o que eu chamo, a primeira grande torção na direção do tratamento: ao falar, portanto demandar, o analista precisa conseguir, depois das muitas repetições necessárias, fazer um furo que permita a virada da demanda, ou seja, é o paciente que passa a lhe pedir algo.
Esse tempo do trabalho é muito longo, mas necessário para que uma psicanálise possa acontecer. O paciente começa a lhe convocar, e esse apelo será elevado à categoria de demanda, mesmo que possa não haver ainda a fala. Aqui então já posso dizer que há a transferência sustentada, agora não apenas pelo analista, mas pelo paciente também, e como diria Freud, o analista já começa a fazer parte do psiquismo do paciente. Aqui eu diria que é o tempo em que o paciente sai da bolha autística, aliás a psicanálise é uma excelente prática para fazer alguém sair da bolha autística, e isso é o manejo da transferência.
Aí, o paciente já mostra claramente que quer vir à sessão, demonstra através de objetos ou palavras soltas, a falta que sente da sessão se esta demora muito para ele, e muitas vezes já enuncia o nome do analista. A transferência imaginária será a que dará inicialmente o tom, mas para aqueles que conseguem chegar a usar da palavra falada para se expressar, pode-se chegar a uma transferência de saber também (sendo essa saída bem mais rara, pois o caminho, normalmente se faz pelo secretariar, mas não da mesma forma que em uma psicose, apenas porque o circuito do conhecimento e do saber é diferente nos autistas, mas isso é tema para outro momento).
Portanto, eu acredito que o paciente com autismo demanda e faz transferência em uma psicanálise, mas há que se trabalhar nessa direção a partir de um tempo de construção dessa torção. A psicanálise, também com o autismo, vai proporcionar uma construção do se saber fazer, partindo dos entraves, das dificuldades, das repetições, das estereotipias, para que o paciente possa construir o seu saber fazer com isso.
4) CRONICID@DES: No trabalho com autistas, o diálogo entre profissionais que se ocupam do falar, do fazer, do comer e do inventar, entre outras habilidades, é enriquecedor para estes sujeitos. Você concorda que o trabalho interdisciplinar é essencial nessa clínica?
Eu concordo sim! O paciente, por exemplo, que já saiu da bolha autística, quer muito entrar em contato com os seus pares, mas não tem ferramentas ainda para se deparar com isso no campo social, precisa ser ajudado nessas especificidades. Ou ainda, um trabalho com o corpo por exemplo, a partir das questões de integração sensorial, em alguns casos pode ajudar ao trabalho da saída da bolha autística que estamos fazendo lá no dispositivo analítico. Os colegas que trabalham para ajudar o paciente a encontrar instrumentos para se virar melhor nesse campo, é fundamental. Faço uma observação apenas: os colegas precisam trabalhar numa mesma direção, independentemente do lugar de onde falam, precisam acompanhando o trabalho da psicanálise, trabalhar na direção da aposta radical no sujeito para não agudizarem o paciente a se cristalizar no lugar de objeto, tomando-o desse modo. O trabalho entre outros só funcionará se todos estiverem numa mesma direção. Isso é muito importante!