1o esclarecimento: desenganche não se refere necessariamente ao desencadeamento da psicose. Se utiliza neodesencadeamento justamente para se referir a forma como o sujeito se desengancha do laço social; como ele se situa como outro em relação ao gozo.
2o esclarecimento: o neodesencadeamento se distingue das formas típicas de desencadeamento cujo paradigma está baseado no encontro com Um pai (como no caso Schreber). Consiste da soltura do broche (ponto de capitão), seja qual for, que estabilizava o sujeito. Isto implica localizar a relação do real com o gozo.
Esta ideia nos leva a uma clínica do funcionamento. Pode-se abordar de 2 maneiras:
1 – Localizar o desenganche a partir do reenganche que opera ou operou retroativamente;
2 – Outro modo é casos de desenganche sem ter havido desenganche anterior. Por exemplo, caso de autismo – JAM: “a psicose nos permite designar o verdadeiro nó traumático na relação com lalingua”.
A partir dos Seminários RSI e O Sinthoma Lacan passou a considerar, para fazer o diagnóstico de psicose, o sujeito na polaridade gozo x significante e não mais, apenas, como presença ou ausência do Nome-do-Pai. Não se trata mais da foraclusão sim ou não mas também em verificar o que mantém junto o RSI.
A questão então passa a ser o que mantém junto os 3 registros e tentarmos localizar na clínica em que momento o sujeito se desengancha em relação ao Outro – e isso, retroativamente, deixa às claras o que mantinha junto os registros e possibilita ao clínico poder dirigir a cura. [ não deixa de guardar semelhança com a clínica da foraclusão].
Proposições de formas clínicas considerando a temporalidade (diacronia) ou a estrutura do desencadeamento (sincronia).
1 – Formas clínicas segundo a Diacronia: o desencadeamento como “momento de concluir” (F. Leguil) – quando há irrupção da psicose se pode localizar os sinais precursores do desencadeamento (“fenômenos de franja”). Exemplo de drogadição (onde há um “progressivo desenganche do Outro”), encobrindo o desencadeamento típico da psicose, que pode acontecer em momentos de grande desamparo e grande solidão.
2 – Formas clínicas segundo a sincronia [corte, ruptura]: o momento de concluir (quando ocorre a crise), com aparecimento de um gozo invasivo que o sujeito não consegue significantizar/simbolizar. O delírio surge como solução pessoal [há uma evidente mostração foraclusiva que denuncia uma fragilidade simbólica]. Não há possibilidade de simbolização como, por exemplo, na histeria em que há uma forma de mediação pelo aparelhamento fantasmático – quando o sujeito se vê frente a identificação com o objeto perdido e há uma relação de objeto possível.
Enfim, nestas formas o que prevalece é uma total impossibilidade do sujeito comunicar sobre o que lhe passa por viver uma experiência enigmática quando é confrontado com um gozo invasivo vindo do Outro e se sente em perigo. Se trata de uma insuficiência no simbólico, uma impossibilidade de significantizar (produzir uma significação fálica) e fazer laço social.
A leitura, a partir da clinica borromeana, é que o desencadeamento é devido ao desanodamento da estrutura na impossibilidade de se estabelecer uma relação imaginária com o corpo e assim limitar o gozo.
II– Exemplos clínicos:
A – Desenganches sucessivos:
Caso 1 – Um homem vai ao analista para consultar sobre a possibilidade de interromper sua análise em curso, devido a desconfiança que surgiu do analista (ele notou gestos hostís que lhe angustiava muito, após a suspensão de uma sessão). Chamava atenção porque não era a primeira vez que isto acontecia, mas ele não conseguia dialetizar esta experiência de repetição – mas por outro lado ele resistia à interrupção.
Este dado (que poderia passar desapercebido se não estivéssemos na clínica borromeana), denotava uma modalidade de desenganche do Outro particularmente sutil: quando instado a romper reiteradamente o laço com o analista tenta o reenganche mantendo o significante da análise (ele não rompe e se vai simplesmente; ele vai para outra análise. É uma tentativa de nomear as várias irrupções de gozo, mas que ele não consegue). Apesar de ter adquirido algum saber em suas análises não conseguia situar/entender o gozo devastador com que se enfrentava periodicamente. Sua historia fôra marcada por 3 momentos:
- na infância o olhar da mãe quando ele estava satisfazendo suas necessidades fisiológicas (ela não lhe deixava só no sanitário);
- na adolescência: a paralisação do pai quando foi solicitado a ajuda-lo a proteger-se de uma sedução homossexual;
- na fase adulta: quando se tornou pai e foi acometido pela irrupção mortificante de uma compulsão pedofílica.
Este sujeito com a análise deu crédito (apesar de não reconhecer subjetivamente), às seguintes construções: o luto impossível de sua mãe (ele era da marinha e passava longos períodos fora); a falta da palavra do pai e sua intenção precoce de encontrar respostas aos mal entendidos sexuais.
Caso 2 – Uma jovem anoréxica.
O sujeito desenvolve um sintoma de cleptomania que assim se manifesta:
- Rouba coisas que não servem para nada ou coisas que substituem comidas para guardar reservas. Então ela desliza entre comer nada e roubar substitutos de comida.
- Goza em provocar o Outro e interrogar a lei: “…se me denunciam não me impede de roubar novamente”.
- Sobre a pulsão: “…é mais forte que eu!” Sempre o que rouba não é suficiente: …”roubei só isso?!”. Mas, em relação a comida é sempre reduzida e demasiada.
Há neste caso algo a mais que não está simbolizado; como também a pulsão oral não está simbolizada. Algo aí se desenganchou.
- O Outro e a lei: a referencia a lei que os pais insistem em fazer não lhe acalma, porque ela não se sente em liberdade: …” na prisão estarei melhor que no hospital psiquiátrico, onde me obrigam a prescindir de meus sintomas…na prisão não me obrigarão a comer”.
- Clínica do real e clínica do gozo: o sujeito anoréxico se pergunta: …”o que me aconteceria se perco meu sintoma?”. Seguramente que, tirar-lhe o comer nada é confrontá-la com o real, é deixa-la em relação direta com a pulsão de morte. Esta paciente confessa ter uma fascinação pela violência destacando a vítima – posição a que ela se identifica. Olhar cenas de violência exorciza sua própria violência. Ela diz que nas cenas de catástrofes que vê na TV sempre lhe parece não haver mortes suficientes.
É um testemunho do nunca suficiente da pulsão de morte que lhe dá a medida da anorexia. Verificamos aí um desenganche do laço social e um enganche à pulsão de morte.
B – Formas atípicas de desencadeamento: o que caracteriza é que o desencadeamento não está na dependência do Nome-do-Pai.
1 – Doença da mentalidade:
- Uma mulher chega à análise depois de 17 anos de tratamento psiquiátrico (com muitas internações e uso de antidepressivos). Sua queixa era que estava ausente de si mesma: “desabitava sua vida”. Fazia um esforço para parecer que desempenhava bem seus papeis, mas sempre fracassava. A análise lhe parecia uma oportunidade de tratar a depressão que ela associava à relação: mãe-morte. Sobrevive graças a dependência dos pais (que inclusive criam seu filho), e a sua aposentadoria como doente. Sua primeira crise associa com a relação com os homens. Não encontra uma boa forma de fazer existir a relação sexual – sempre fracassa frente a ausência da fantasia para tamponar sua relação ao real. Se descreve como “fora da civilização”.
Inicialmente o analista a tomou como histérica grave (sua incapacidade de dar conta da questão: o que é ser uma mulher para um homem?). Mas, se convence da psicose quando percebe que o momento de oscilação da estrutura aparece no primeiro encontro sexual com um rapaz que parecia está enamorada. Ao perceber que o rapaz se interessava por pedaços de seu corpo sente-se desfalicizada e fora de seu corpo em uma verdadeira regressão especular massiva. O analista percebe que há uma elisão do falo – ausência da significação fálica – quando do momento da penetração e esta elisão leva a regressão a hiância mortífera do Estádio do espelho. A continuidade da análise é marcada pela pergunta que o sujeito se faz: …Quem sou aí? – para se definir como “uma meia ao avesso”!
O autor conclui que o falo é o termo que o sujeito se identifica e no caso de Marie-Pierre se sentir a meia ao avesso é “um atentado a juntura mais íntima do sentimento de vida no sujeito”; é uma doença da mentalidade e a elisão do falo o que a diagnostica como psicótica.
2 – Encontro com um gozo enigmático:
É um caso de uma jovem em entrevista para internação psiquiátrica devido a um acesso delirante. O caso interessa pela forma que se desencadeia a psicose. É a partir da primeira relação sexual que ela vivencia como a invasão de uma sensação estranha em seu corpo – o orgasmo não é reconhecido como tal e sim como um encontro com um gozo enigmático devido a falta da significação fálica e é disso que se trata no desencadeamento da psicose. A questão é: como responde o sujeito a este encontro? Se trata de um real que não encontra uma resposta simbólica e o sujeito responde com uma realidade delirante (uma manipulação corporal persecutória). Se mostra a foraclusão e a novidade é o acento dado ao encontro com um gozo.
3 – Outro caso (um encontro com um real – o enigma do desejo de um homem – tem como resposta a psicose):
Uma paciente, que estava em uso de neurolépticos, foi enviada pelo psiquiatra. Muito inibida face a um episodio delirante. Tinha uma certeza em relação a seu tratamento (não estava em relação ao SsS); não queria recordar o que lhe havia passado. Seu tratamento já durava 1 ano e 6 meses.
Se apaixonou por um rapaz que dizia ser um marginal (um traficante?) e não lhe correspondia namorar com um tipo como este. Ao encontro com este homem responde com um delírio – ele está metido com a máfia e não lhe deseja bem. Apesar de considerar ridícula esta construção delirante não conseguia deixar de pensar e acreditar nisto. Em seguida apresenta alucinações auditivas – a voz de uma rainha que a condena pela relação com este homem. O delírio persiste mesmo com o termino do relacionamento. O tratamento se concentra na possibilidade de retomar o relacionamento social – e consegue retornar ao trabalho. Depois de alguns meses ocorre um novo desencadeamento (a partir de uma questão colocada por uma amiga: “…quando vai se apaixonar novamente?”). Um segundo episódio delirante de cunho persecutório se instala novamente e passa a assumir uma posição de hostilidade com o analista. Interrompe a análise – a certeza presente na psicose, aparece agora desta forma: interromper a análise.
4 – Sra. P. – “Antes de tudo que nada mude”.
A questão não era o que dizia e sim o que não dizia com esta frase. O analista começa a questionar a estrutura. Ela diz que fez um tratamento psiquiátrico durante vários anos a partir de um filme (As palavras para dizer-lhe), que lhe marcou muito – “me reconheci aí e desencadeou tudo”. Posteriormente foi tratada por uma analista com o diagnóstico de histeria.
Há 4 anos está em um novo tratamento: suas sessões sempre começam assim: “tudo bem… ou não ando nada bem”, após o que fica em silencio, só interrompido pelo analista. Sua vida está calcada no modelo de relacionamento com a mãe: “ela faz tudo para alienar-me …eu não posso me controlar e explodo…me sinto sempre póschateada e pósbrigada com minha mãe”. Sua vida é assim: se sente manipulada e manipuladora com todos. Por exemplo, vive se mudando porque sempre tem uma briga com os vizinhos que fazem ruídos …quer ficar anônima e não consegue…aí se muda.
“Não entendo por que ouço tudo, estou muito alerta”. O analista se indaga: o que há e o que não há para ouvir. Descobre que há um acontecimento traumático: foi uma criança não desejada que nasceu 15 anos depois de seu irmão. Sua mãe lhe disse uma vez, sobre seu nascimento: “Tivestes sorte; pudeste eleger” (em relação a um aborto da filha). Aos 15 anos (vivia sozinha com seus pais), escutou um grito e viu que seu pai foi assassinado (por um ladrão) no seu negócio (abaixo da casa em que viviam). Ela tem dificuldade de situar-se em relação ao período que isto aconteceu.
O analista considera que este traumatismo não se relaciona com a histeria e pensa: é um neodesencadeamento psicótico? Não há uma ruptura total, pelo contrário, tudo se congela e ela leva uma vida dentro das normas. Mas, a relação com a mãe se torna insuportável e, após se formar, faz um concurso e se muda para Paris. Encontra um companheiro, tem um filho e a vida continua bem, salvo pela angústia que sente.
Quando, por algum motivo, o analista não pode recebê-la , se rebela e muda seu estado de animo (normalmente é muito sorridente). Ameaça o analista que vai abandoná-lo se não melhora.
O diagnóstico de psicose se impõe: vive com um homem que não conhece bem; nunca se refere a sexualidade – não há exclusão da genitalidade e sim foraclusão fálica; tem uma relação particular com as palavras – “me encantam as palavras, me aliviam, eu gosto muito, me acalmam”. Mas estas palavras não se metaforizam; brotam metonimicamente sem parar; não remetem a uma resposta do lado do Outro, não se dialetizam no discurso.
Quando funciona o N-d-P o sujeito dar um sentido comum ao sexual, ainda que isso possa parecer enigmático. Isso permite ao sujeito suportar as alusões e não delirar. Quando se é neurótico se comparte o sentido e há um pertencimento a mesma paróquia – a do sentido sexual. O delírio do psicótico tira o sujeito desta paróquia. Nas psicoses ordinárias temos que identificar a relação do sujeito com esta paróquia comum.
O analista questiona: o que pode o analista frente a este discurso? – ser o receptáculo de seus males e palavras para que possa encontrar um modo de suportar seu gozo.