Na noite de 02 de agosto de 2017, continuamos com nosso programa de investigação sobre as psicoses ordinárias, empreendida por integrantes do Núcleo de Psicose do Instituto de Psicanálise da Bahia. Os encontros do núcleo constituem-se como atividades preparatórias para a XXII Jornada da EBP-Bahia. Já realizamos em meses anteriores um estudo sobre a Conversação de Arcachon e agora nos detemos no livro Psicoses Ordinárias. O objetivo deste livro é
“estabelecer novas convenções sobre a psicose, recuperando alguns conceitos clássicos da clínica lacaniana e reformulando-os, para apresentar alternativas ao estabelecimento do diagnóstico diferencial entre neurose e psicose, na discussão de casos em atendimento”.
O capítulo de trabalho se chama “Investigações sobre o início da psicose” e localiza-se na primeira parte do livro, que congrega textos sobre o neodesencadeamento. Este capítulo foi produzido a partir de uma sessão clínica realizada na cidade de Lille e tem como objetivo investigar os modos de início da psicose.
Lembremo-nos de que a “Questão preliminar” que se coloca “a todo tratamento possível das psicoses”, levantada por Lacan em artigo homônimo, é a foraclusão do Nome-do-Pai. É a partir desta especificidade que adentramos no campo das psicoses. Lacan, no entanto, já nos indicava que a foraclusão só é possível de ser observada a partir de seus efeitos, a depender de sua consistência simbólico-real (nomeando-os de P0) e de sua consistência imaginário-real (Φ0). Assim, a foraclusão do Nome-do-Pai cava “abismos” onde um gozo ilimitado surge sem aparelhamento, um plus de gozo real irrompe, e nos possibilita observar fenômenos precisos. A emergência destes fenômenos nos permite observar diferentes modos de entradas na psicose. Suas variações vão além da sequência temporal do desencadeamento clássico e nos permite entender melhor como pode ocorrer o que se chama neo-desencadeamento.
Lembremos a sequência temporal de um desencadeamento clássico:
- Irrupção de Um-Pai no Real, contingencial, ou seja, a irrupção de um gozo real.
- Dissolução de uma identificação (imaginária) estabilizadora
- Apelo ao significante Nome-do-Pai foracluído
- Formação de P0
- Formação de Φ0
Observe que a formação de Φ0 é temporalmente posterior à formação de P0. Ou seja, a consequência de P0, no imaginário, é a formação de Φ0. Este ponto é crucial para entendermos as variantes do modo de entrada na psicose. Cabe agora especificarmos o que se entende como fenômenos de P0 e Φ0.
Os fenômenos de P0 contemplam:
– Alucinações (também verbais);
– Perturbações da linguagem (somente elas “provam ‘automaticamente’ a foraclusão do Nome-do-Pai”). Constituem-se como perturbações da fala e da enunciação e vão de ecos do pensamento à linguagem fundamental, passando pelo automatismo mental e os fenômenos de pensamento imposto.
Observe que os fenômenos de P0 tem como característica serem “anidéicos”, excluindo, portanto, ideias delirantes.
Os fenômenos de Φ0 contemplam:
– Ideias delirantes ligadas à sexualidade e ao corpo;
– Passagens-ao-ato;
– Disfunções corporais;
– Perda de sentimento de vida (chegando ao suicídio).
Em casos onde não podemos demonstrar uma psicose claramente – o que é possível apenas a partir das perturbações de linguagem – “um estudo do conjunto do quadro clínico a partir da articulação detalhada de seus elementos” se mostra necessário para o efeito diagnóstico. Tomamos em nosso encontro 04 dos 05 casos presentes no texto onde se pôde observar diversos modos de entrada na psicose sem a observação de perturbações da linguagem, sem um desencadeamento completo. Estes casos se alocam de acordo com o modo de entrada na psicose onde Φ0 ganha proeminência:
Um-Pai → Φ0
Φ0 sem Um-Pai
Φ0 e, mais tarde, P0
A dificuldade do diagnóstico de psicose ordinária, então, me parece residir em se poder verificar apenas efeitos de Φ0 – com ou sem a anterioridade lógica da irrupção de Um-Pai no Real – o que nos aproxima da ideia de que os “signos discretos” da psicose ordinária são exatamente estes efeitos de Φ0, sobretudo quando não podemos contar com um delírio.
Talvez a expressão “neo-desencadeamento” seja a que melhor defina a fineza clínica das variações de modos de entrada em uma psicose quando abordadas a partir do referencial da primeira clínica, deixando expressões como “desenganches” ou “desenodamentos” para leituras clínicas onde se utilize do aporte da segunda clínica lacaniana, pela clara referência aos nós. Lembremos que um desenodamento não é necessariamente psicótico, pois o lapso do nó ocorre independente da estrutura. Em realidade, lembremo-nos de que Lacan, no Seminário XXII, nos esclarece que os três registros estão desenodados a princípio, restando ao quarto nó, o sinthoma, enodá-los. Neste capítulo, contudo, os autores não farão referência aos nós. Apenas no final do texto veremos uma menção sobre a função do sinthoma, de manter juntos RSI.
Jacques-Alain Miller propõe pensarmos que desligamentos são “crises suscitadas por disfunções no aparelho do sintoma“. Estas disfunções, estes desligamentos, podem ser chamados de:
- Desencadeamento, se são efeitos de P0
- Entrada na psicose (ou neodesencadeamentos), se são efeitos de Φ0.
Este encontro me foi importante para melhor dizer sobre as entradas na psicose, mas também para precisar, na clínica clinicamente os signos discretos da psicose ordinária.