O livro Psicopatologia Lacaniana, organizado por Antônio Teixeira e Heloísa Caldas e composto por textos escritos por psicanalistas do campo freudiano, nos instiga a curiosidade: do que se trata a psicopatologia lacaniana?
Podemos pensar, a princípio, que a expressão psicopatologia lacaniana parece não dialogar entre si. Psicopatologia nos remete à psiquiatria, campo de saber atualmente tão distante da psicanálise. Por outro lado, o livro nos mostra que, se por um lado psiquiatria e psicanálise apresentam divergências entre si, ambas têm também pontos de proximidade e o principal deles é justamente o que origina esses dois campos: a clínica.
Pinel, ao fundar a psiquiatria, funda também a clínica psiquiátrica, já que seu único instrumento de tratamento era a escuta do paciente. O desenvolvimento da psiquiatria se deu através da descrição e nomeação do que era possível de se escutar dos pacientes. Havia desde o início por parte dos psiquiatras o interesse de localizar na anatomia fenômenos que até então só podiam ser descritos, mas esse interesse caminhava juntamente com a clínica. Assim, como destaca Barreto (2017), no momento em que a psiquiatria realizar o desejo de se tornar uma ciência meramente apoiada nas evidências biológicas, chegará ao seu fim, na medida em que irá se incorporar a neurologia, fato que, segundo o autor, já ocorre em alguns países.
Freud, por sua vez, baseia-se na clínica psiquiátrica da época e dá um passo a mais quando funda a psicanálise. Ele não se contenta com a descrição e categorização dos fenômenos psíquicos enquanto explicação para os transtornos mentais e decide investigar as suas causas. Para isso, estabelece como método de trabalho a escuta e coloca o saber do lado do paciente, encorajando-o a falar para que assim possa se dar conta do saber inconsciente que promoveria a cura dos sintomas. O corpo psicanalítico, seguindo Freud, é o corpo marcado pela linguagem, desnaturalizado, oposto ao corpo biológico objeto da psiquiatria. Essa desnaturalização, condição da existência humana, já que estamos todos submetidos a linguagem, seria a causa da psicopatologia. Não podemos esquecer que a psicopatologia de Freud é aquela da vida cotidiana expressada através dos lapsos, atos falhos, esquecimentos, enfim fenômenos que concernem a vida de todos nós. Nessa perspectiva, a psicopatologia, ao invés de apontar para anormalidade, aparece enquanto algo da normalidade da vida, já que a linguagem adoece a todos.
Lacan, em seu primeiro ensino, avança na perspectiva freudiana e apoia-se nas categorias psiquiátricas da época (neuroses, perversões, psicoses funcionais) para definir as estruturas neurose, psicose e perversão enquanto formas do sujeito se localizar frente ao significante Nome do Pai. Lacan, assim como Freud, subverte o saber psiquiátrico dando a palavra ao louco. “Em vez de se manter na perspectiva de que o louco, arrebatado por delírios de influência, assolados por automatismos, deixa de reconhecer o que produziria como delirante…Lacan, “prefere questionar por que um louco teria de professar um tal reconhecimento e o que ele teria de conhecer de si nessas produções…” (LAIA E AGUIAR, 2017 p. 20)
A psicanálise serviu-se, portanto, da psiquiatria para formulação de seus pressupostos essenciais. Neste sentido, servir-se da psicopatologia na perspectiva de fazer uma nova leitura de seus aspectos à luz da psicanálise, parece um esforço de formulação extremamente necessário na era de manuais e protocolos psiquiátricos. Nesse momento atual em que a psiquiatria parece produzir seu saber baseando-se no instante de ver para logo chegar ao momento de concluir, a psicopatologia lacaniana entra no circuito, introduzindo o tempo de compreender.