Continuamos no Núcleo de Psicose com a leitura do livro “A psicose ordinária – a convenção de Antibes”. Trazemos aqui alguns fragmentos do capítulo “Usos do corpo e sintomas”, cujo ponto central relaciona o uso do corpo aos sintomas e às estruturas. Nesse sentido, o texto traz uma distinção entre conversão histérica e fenômeno psicossomático (que pode ocorrer na neurose ou na psicose), apresentando diferentes modos do uso do corpo para manter amarrados os registros real, simbólico e imaginário.
Se é necessário um corpo para apresentar um sintoma de conversão, discute-se neste capítulo que uma “neo-conversão” pode permitir a um sujeito se fazer um corpo a partir de seu sintoma.
Fazer-se um corpo para se fazer um nome
Sylvie, aos 28 anos, tem um longo histórico de marcas no corpo e tentativas de suicídio. As primeiras passagens ao ato ocorrem quando é reprovada em um exame e um garoto a perturba, chamando-a de nula. Sucedem-se então marcas feitas com lâmina de barbear na face, desenhando uma máscara, para ver o sangue correr. Experimenta então um grande alívio de sua angústia, quando passa a poder se olhar e a suportar o olhar dos outros: ela tem um corpo, ela é o seu corpo.
Desde os primeiros encontros com o analista, Sylvie leva às sessões cadernos em que escrevia seus pensamentos, um tipo de diário. Depois passa a escrever cartas ao analista, conotação erotomaníaca da transferência. Ela sente um grande alívio ao depositar as cartas no correio, semelhante ao que sentia antes com os cortes na pele. É o ponto crucial: o efeito de cessão da carta pode ser assimilado a uma sessão de gozo e tem como correlato a sedação da angústia. Os cortes no rosto nunca mais se reproduzem.
Com a entrada da transferência, assistimos a uma substituição: a transferência permite que não seja mais o masoquismo como tal o que opera esse nó, mas é a transferência como real que vem efetuar essa operação. A introdução do Outro real da transferência abre uma outra possibilidade diferente da repetição da passagem ao ato. Tudo leva a pensar que o imaginário do corpo estava solto, e ela tentava amarrar esse corpo ao resto de seu ser através das passagens ao ato. A transferência permitiu que o real e o simbólico servissem de enodamento desse imaginário que escapava, amarrando-o de outra maneira.
Sylvie se separa de um gozo incluso no corpo, pela criação de seus cadernos de notas, verdadeiro fora-do-corpo que concentra e circunscreve um gozo a mais. Mas, se esses escritos se enodam à imagem especular, eles não são em si suficientes, é preciso algo a mais: que Sylvie dê voz na sessão, para que a cessão dessa carta, o seu depósito, se opere e se constitua também um laço com o Outro, diferente de seu corpo.
Conversão histérica X Fenômeno psicossomático (FPS)
A conversão histérica apresenta-se como um sintoma que se inscreve no nível do corpo, decifrável pelo saber inconsciente. A conversão é a prova viva de que o corpo não se confunde com a anatomia e que sua imersão na linguagem o mortifica e o erotiza ao mesmo tempo, na colocação em ato de uma satisfação pulsional clandestina que se opera apesar dos ideais do eu, ligado ao fracasso do recalcamento.
Um FPS escapa à regulação fálica, muito embora não seja sem relação com a ação do significante. Uma evasiva quanto à estrutura da linguagem não é sem consequência anatômica, sem consequência para a realidade do corpo.
Um FPS não tem a mesma função na neurose e na psicose. Na neurose, o FPS pode fazer signo de um déficit momentâneo da defesa do sujeito no encontro com um acontecimento, uma lembrança insuportável, um traumatismo ou um segredo até então intransmissível, por exemplo. Na psicose, o FPS, em sua função de enquadramento do nome próprio, vem circunscrever, no lugar do corpo, um espaço delimitado e separado, permitindo a um sujeito se fazer um nome sem passar pelo Nome-do-Pai.
Quando não se trata de psicose, mas de neurose, pode-se considerar a escrita psicossomática como o índice de um modo de gozo ilícito que escapa à castração e que se relaciona, mais frequentemente, com um traço de perversão que vem desmenti-la. Somente a invenção do inconsciente, via transferência, tem chance de descompactar a soldagem significante e revelar ao sujeito a fixação de gozo que ele se recusava a ceder, esse excesso de gozo, Übertreibung, de cuja responsabilidade ele se esquiva por meio de seu estatuto de doente.