Era para ser a partir da obra, e não sobre a vida. Assim havia sido o convite para escrever uma peça sobre o Marquês de Sade. Era para ser montada por quem convidou, e não foi (cometi o delito eu mesmo, anos depois).
Era para ser erótica, e não política, mas as minhas leituras, descobertas e inspiração me conduziam a pensar o erótico através do poder. O que mais é o sadismo que não unir sexo e dominação, ordem e caos, orgasmo e castração?
Sade passou por cinco regimes diferentes. Foi preso em todos eles. As acusações variavam de excessivo a moderado. Ele não podia dar certo, e não queriam que ele se encaixasse em nenhum sistema político e social, pois sua contradição entre a liberdade e a libertinagem fazia do marquês um revolucionário e um reacionário, a depender da ocasião, do caso, de qual poder estava sendo fustigado, acariciado ou sublevado.
Na arte, nunca se deve pensar o que era para ser, porque o ser que se cria na arte sofre daquele descontrole próprio do ato de criar. Em algum momento, a harmonia, o corpo, as palavras, a imagem, a melodia, nos conduzem para onde eles querem.
Programei sim a ordem dos quadros. Escolhi minuciosamente quais quadros escrever, quais personagens usar. Eu queria, ao mesmo tempo, falar de política, sexo e religião, três temas que perseguiram e eram perseguidos por Sade ao longo de sua vida, e que o ajudaram e atrapalharam a ser o escritor e o prisioneiro que foi, a ser o libertino e o sem liberdade que foi.
Além de tudo isso, embasei minhas escolhas dentro do arcabouço da minha bibliografia, buscando referências, inspirações e diálogo com pensadores de diversos matizes e escolas. Em certo momento, minha orientadora se preocupou. Minha peça poderia ficar dura, esquemática e racional demais. Sim, transformei meu estudo, criação e reflexão sobre a escrita de SADE em meu mestrado.
Adiantou? Muito. Mas não o suficiente para que meus personagens e minhas situações saíssem feito doidos buscando suas identidades, seus conflitos, suas vozes.
O ato de escrever é sempre se ver refletido no lago, e depois jogar uma pedra para ver como a imagem fica. A depender de como se jogue, que pedra seja essa, com qual força, em qual lago, e com qual luz incidindo, temperatura influindo e atmosfera instalada, perdemos o controle e o que nos resta é tentar captar os círculos concêntricos, as ondas, a lama que pode ter subido, a chuva ou folha que pode ter caído, e assim nosso reflexo vai se metamorfoseando em arte.
Por isso, sempre estamos um pouco em cada personagem, e talvez por isso eles queiram mais e mais fugir da gente, a depender da obra. Por isso, também, condensamos, dispersamos ou bagunçamos nossas loucuras, anseios, complexos, prazeres e dores quando criamos uma obra de arte. Para que tudo isso seja expurgado, exposto, denunciado ou, quem sabe, até mesmo curado?
Se há algo de terapêutico, não me compete falar. Contudo, o fato de conseguir conduzir à uma peça, ou canção, nossas angústias e questionamentos, de certa forma nos traz a leveza de, na criação, ter conseguido transferir um pouco de nós.
Os temas mais urgentes, ou mais polêmicos, instigantes, potentes, são sempre um convite a mergulharmos em nós mesmos e fisgarmos de algum lugar os anjos e demônios que serão emprestados, ou ganharão o mundo na obra que criamos.
O verbo se fazendo carne. A palavra se fazendo dor e gozo.
Gil Vicente Tavares: diretor, diretor artístico do Teatro Nu, dramaturgo, compositor e professor da Escola de Teatro da UFBA. Gil é hoje um dos nomes mais importantes da dramaturgia baiana, tendo escrito “Sade”, peça vencedora do Prêmio FAPEX de Teatro 2010 e do Prêmio Braskem de melhor texto em 2016.
www.teatronu.com
www.facebook.com/gvtavares
www.twitter.com/gilvtavares