Lacan começa seu trabalho clínico pela prática institucional com a psicose, no Hospital Saint-Anne, e faz da investigação da psicose o fio condutor de seu ensino, considerando a psicose como reveladora da própria estrutura, possibilitando um saber sobre a relação do humano com a linguagem que estaria velado na neurose.
Essa aproximação entre psicose e neurose já se encontra em Freud, como lembra Brodsky[1]. No artigo “A perda da realidade na neurose e na psicose”, Freud explica que o neurótico tira libido do mundo externo e a coloca à serviço do mundo interno, em uma substituição de uma realidade por outra, criada conforme o desejo. Como explica Brodsky, ao aproximar a fantasia do delírio, Freud propõe um mecanismo semelhante: a retração da libido. Os sonhos, o romance familiar, as fantasias sexuais infantis, o neurótico se refugiaria na fantasia, e a realidade seria subjetivamente escolhida e construída por cada um, entre um rechaço – “isso não existe” – e uma substituição – a fantasia. Brodsky diz ainda que Lacan retoma a tensão entre “o que não existe” e o que “ex-siste”, “existe fora”, campo de uma extimidade fundamental que estenderia o campo da existência do falasser.
Nesse sentido, a psicose orienta nossa pesquisa para o que desvela da estrutura. No texto “A loucura nossa de cada dia”, Brodsky elenca alguns pontos pelos quais podemos entender a neurose a partir da psicose, trazendo oito referências tomadas de Miller, que transcrevemos aqui:
1) “O psicótico é um sujeito que verifica em seu sofrimento o estatuto de ser falado, estatuto que o neurótico esquece ao identificar-se com o sujeito que fala; o neurótico pensa que ele é quem fala, esquece que é falado, enquanto o psicótico o diz abertamente, sofre por ser falado pelo Outro.”
2) “O delírio e a alucinação revelam que a referência da linguagem não existe, coisa que o neurótico esquece, e que cada vez que falamos não fazemos outra coisa senão falar de coisas inexistentes, que essa é a natureza mesma do fato de falar e mais ainda, que a clínica psicanalítica, tal como Freud a estruturou, parte da consideração de um objeto inexistente, que é preciso ver em que se diferencia dos objetos inexistentes que constituem a interrogação do psicótico. Freud organiza a clínica das neuroses em torno do falo materno, objeto inexistente, comparável ao do delírio, coisa que o neurótico esquece. (…) Diante do louco, diante do delirante nunca esqueças que tu, que fostes analisante, também falavas do que não existe.”
3) “[…] a experiência da psicose é fundamental para justificar que acrescentemos aos objetos freudianos (os objetos freudianos são o seio e as fezes, o falo), esses objetos lacanianos que são o olhar e a voz, e que apenas revelam sua verdadeira estrutura na experiência delirante, na experiência alucinatória […].”
4) “[…] o próprio do significante não é ter efeitos de significado, o próprio do significante é ter efeitos de gozo e é disso que sofre a experiência psicótica e que a experiência neurótica esquece, alienada no efeito imaginário de significação. O neurótico busca a significação, o psicótico sabe que não significa nada, mas que a palavra introduz gozo no corpo.”
5) “O próprio estatuto do inconsciente, como cadeia de significantes decifrável, é um produto do dispositivo analítico, porque o verdadeiro estatuto do inconsciente é ser S1, um significante sozinho, ou um enxame de significantes sozinhos que não formam nenhuma cadeia e que, consequentemente, não têm nenhum sentido; daí o interesse de Lacan pela obra de um psicótico, Joyce, que é um desabonado do inconsciente, ou seja, que não é capturado, como os neuróticos, pelos efeitos do sentido das palavras e que, pelo contrário, tritura o efeito de sentido.”
6) ”O Nome-do-Pai não passa de um sintoma contingente entre outros, cuja função é apenas amarrar três registros: real, simbólico e imaginário”.
7) “O enigma é uma norma, porque o normal, contrariamente ao que acredita o neurótico, não é a articulação do significante com o significado”.
8) “[…] o sintoma já não serve agora para diferenciar neurose e psicose”.
Como salienta Brodsky,
Para Lacan a psicose não apenas ilumina a estrutura da neurose, mas revela o estatuto do inconsciente, o estatuto do Outro, o estatuto do objeto a, colocando em evidência a natureza tanto do sintoma como do sujeito analisado. É uma maneira de dar oito argumentos que permitem ver o que o psicótico ensina à psicanálise: o psicótico evidencia aquilo que a neurose desconhece.