Exposição ” Uma Índia , dois olhares”
Em um mundo tomado por telas e câmeras, é sempre um desafio fotografar a Índia de modo original. As fotografias da Índia me foram apresentadas, nos anos 90, através da dramaticidade em preto e branco de The Price of Freedom, obra de Raghu Rai, ícone da fotografia indiana. Aos poucos vieram as cores, e o país passou a revelar uma paleta inconfundível, talvez a mais vasta do planeta para um fotógrafo.
Faz parte de seu ofício explorar um ambiente que não lhe seja familiar. Sair da zona de conforto e enfrentar a alteridade do outro lado da rua, do outro lado da janela ou do outro lado do mundo. Quando vemos uma foto, devemos sempre buscar os efeitos dessa alteridade. Uma inquietante estranheza que, paradoxalmente, acaba por mostrar o mais íntimo em nós, como afirmava Freud. Não é esta, justamente, a genialidade de uma fotógrafa como Diane Arbus? Transformar sua conhecida Nova York em uma cidade completamente estranha?
Surge assim a ideia original de uma exposição que traz a tensão entre o Um do objeto e o Dois de uma dupla de fotógrafos. É por essa via que a exposição “Uma Índia, dois olhares” instiga nossa própria divisão subjetiva, convidando-nos a oscilar nosso olhar por um e outro autor, caminhando por seus percursos visuais em uma cartografia tão distante. O que se descobre é que, mesmo juntos, vivemos todos em realidades separadas. Através de nossas lentes singulares, enxergamos o mundo sempre solitários. Nesse sentido, “Uma Índia, dois olhares” não deixa de ser um exercício de amor, ou seja, fazer surgir o Um onde há dois. A Índia os divide, a exposição os une.
Celebrar a vida para além da lei dos homens. Sob o olhar de Sinísia Coni, o movimento e a contemplação apontam para o que falta ao mundo físico. Eis uma outra conexão com a verdade de nossa existência. As águas do Ganges banham os corpos. Os purificam? Seria esse gesto uma reminiscência de nossa aquosa vida intrauterina, ainda livre dos pecados que chegam com o nascimento? Diante do inapreensível, Sinísia fotografa os gestos. As imagens se organizam em torno de algo transcendente que nunca estará visível, algo que emana das águas dando um sentido à existência.
Já Armando Correa Ribeiro faz um caminho curiosamente inverso e complementar. Na concretude nervosa de um mundo físico repleto de conexões e interpelações, “modalidade inelutável do visível” nas palavras de James Joyce, é o corpo que está em evidência. Às vezes como resistência ao vento, como na foto da mulher solitária que avança com seu véu laranja, às vezes como o olhar ambíguo de uma jovem na janela de um ônibus. Estará ela olhando para nós ou mais além? Nesse pequeno estrabismo encontra-se toda a ambiguidade do objeto olhar.
E assim, os dois olhares nos revelam algo do sagrado e do profano dessa cultura. O profano afeta os corpos em sua relação com o mundo físico, traduzindo a erótica dos corpos vivos da cena cotidiana. O sagrado transcende os sentidos, é puro gestual, muitas vezes repetitivo, muitas vezes silencioso, que se torna inapreensível aos discursos. Onde a palavra falta, a fotografia é capaz de capturar algo da poesia desses gestos. E quando os corpos se confundem com o barulho e caos visual urbano, a fotografia consegue elevá-los à dignidade de uma erótica. Por isso, como diz o filósofo e historiador da arte Didi-Huberman, olhar não é uma competência, é uma experiência.