A psicanálise se instalou, em cada país, como derivação das homologações sociais do desejo de curar, afirma Eric Laurent (1). Refere-se, entre outras coisas, aos modos como cada um se autoriza para o exercício das práticas terapêuticas, especialmente as “psi”: através de certificados acadêmicos, cursos, cumplicidade entre pares, etc. Diferente de outros lugares, como Argentina, na Bahia/Brasil- a psicanálise não se instalou através das faculdades de Psicologia, nem de Medicina. No entanto, atualmente a primeira, ao lado dos Serviços de Saúde Mental, como os Caps, são um âmbito indispensável para a transmissão da psicanálise; apesar do evidente avanço das TCC com sua ideologia terapêutica nas universidades.
Parece inerente às instituições, especialmente às de saúde mental, a contaminação pelo desejo de curar e sua ideologia terapêutica. Mas, por que perante esta realidade institucional inquestionável, Laurent (2) nos adverte para não querermos saber demais sobre suas regras de funcionamento nos convidando a ter prudência? Porque o grande segredo da regra, incluindo as institucionais, é que cada fase de sua aplicação esconde uma escolha de gozo particular. E de que modo dar lugar, no campo da realidade institucional, às particularidades do gozo de cada um, sem a participação de um movimento que de alguma forma, se inclua fora da tendência -massificadora- à identificação comum para todos os indivíduos?
Se toda instituição acaba por fazer efeito de massa – coagulação em torno de um gozo compulsivo – a advertência de E. Laurent não aspira à outra coisa senão a manter viva a prática da interpretação, inclusive das regras institucionais, apostando na desidentificação, na desmassificação de seus indivíduos. A esta consideração das particularidades, com o respeito pela palavra e pela leitura de cada um, sem antepor uma (regra de) interpretação prévia, podemos fazer equivaler com o nascimento do sujeito lacaniano, que no campo da Saúde Mental adquire uma aproximação com o sujeito-de-direito. Uma massa não é feita de sujeitos, é feita de indivíduos identificados. Este sujeito, diferente do individuo, na verdade é uma relação, uma função social, conforme afirmava Carlo Viganò (3) em suas conferências mineiras. Em outras palavras, não há instituição que não seja sintomática; ou seja, no melhor dos casos, uma solução de compromisso.
Uma prática heterodoxa
Trabalhar com a psicose, desde a psicanálise, implica em admitir que a priori não exista um lugar para as soluções de compromisso dos discursos estabelecidos, e que em seu lugar aparecem invenções singulares que, em muitos casos, trazem soluções de rompimento e em outros, soluções ad-hoc mais ou menos consistentes, porém que, em todo caso, não desconhecem a dignidade de uma resposta. Servir-se deste axioma significa levar até as últimas consequências a máxima lacaniana de uma prática “sem standards porém não sem princípios”. A respeito desta prática o que pode nos ensinar um psicótico? Que assim como este, um psicanalista não tem garantido seu próprio lugar na instituição; salvo raras exceções, como “A psicanalista” da equipe de um Centro de Atenção Psicossocial que tive a oportunidade de supervisar clínico-institucionalmente. Na ocasião, tratava-se de alguém “autorizada” por Pastores de uma Igreja Ortodoxa a través da homologação do titulo de “Psicanalista” – com direito a Certificado – para o exercício da “profissão” depois de um Curso de dois anos, reconhecido oficialmente. Trata-se de uma verdadeira “epidemia” no Brasil, que nos lembra do “triunfo da religião” referido por Lacan em forma de livro.
Diferentemente do caso citado – delírio particular que fazia existir A Psicanalista de fato – participar de uma instituição em carácter de Psicólogo, –no auge das neurociências– significa estar bem próximo dos Pastores da Palavra. Mas o que significa este em carácter de? Significa que não é a mesma coisa ser o psicólogo, o médico, o enfermeiro, o cozinheiro, o estagiário, o Diretor Clínico, etc. Pois, O/os discursos pelos quais respondemos nos pre-interpretam em função dos lugares que ocupemos para e no Outro. Por outro lado, sabemos que o discurso analítico, com seus quatro lugares, é um discurso sem palavras, um modo de fazer laço que, como a arte, transmite um sentido sem significação, como a música, especialmente.
Costuma-se dizer que na instituição, se trabalha em equipe ou pelo menos, em grupo; entre vários, como dizemos entre nos. Nesse contexto, fazer uso do discurso do analista, não quer dizer encarnar o sujeito suposto saber, que na maioria das vezes brilha por sua ausência, ou que em todo caso encarnou em outra entidade. Servir-se desse discurso em tempos da lei seca –lei de ferro segundo Lacan– implica em, eventualmente, fazer operar um lugar vazio que não é qualquer, senão o que dita a regra do funcionamento do grupo e onde o lugar do líder é ocupado por uma satisfação: como pode se perceber, trata-se da lógica desse grupo particular que é o cartel, e que serve também para conduzir atividades grupais na instituição.
Paradigma adições
Na prática institucional recebemos cada vez com maior frequência sujeitos psicóticos que abusam do uso de drogas. Inclusive nos últimos tempos têm sido a maioria; refiro-me a indivíduos “desabonados”, surtados, descompensados, desestabilizados, alucinados e delirados pelos seus inconscientes a céu aberto. As drogas de sua escolha cumprem as mais diversas funções: desde acalmar alguns, excitar outros, compensar desestabilizados, desencadear uma esquizofrenia, fazer calar as vozes invasivas, fazer falar as vozes injuriantes, conectar alguns com a realidade externa, desconectar outros dela, etc. Constatação in locus de que entre o campo aparentemente organizado das classificações teóricas e a multiplicidade da prática não há correspondência.
Germán García(4), referindo-se à entrada em cena de “os inclassificáveis” via J. A. Miller -e o questionamento da oposição suposta entre uma clínica continuísta versus uma clínica descontinua–, nos dá a pista da bricolagem de O pensamento selvagem, de Lévi-Strauss: em termos de classificações, ainda que mude algum elemento, mantemos uma organização tripartite. E afirma que a tripartição freudiana (neurose/psicose/perversão) foi substituída por (neurose/psicose/novas formas do sintoma). No entanto, afirma, permanece a suposição de que a estrutura está composta por três elementos. Devo dizer que o sucedido no âmbito da política de saúde mental brasileira na última década -a substituição de leitos “psiquiátricos” por leitos para “adictos”, em nome da reforma psiquiátrica- corrobora esta tese: a adição como paradigma das novas formas de apresentação do sintoma.
Avançar pela via que leva a J.-A. Miller a propor, por um lado, o sintagma da psicose ordinária, e por outra, ocuparmos menos da toxicomania e mais da função da droga, implica em não precipitar-se a esquematizar as coisas ao ponto de reduzir uma função da droga para a psicose e outra função da droga para a neurose; a partir da fórmula lacaniana sobre sua função de rompimento com o gozo fálico na neurose e de sua função de suposta suplência do Nome-do-Pai para a psicose. Em primeiro lugar, se o uso de uma droga adquire uma função de suplência, precisamos demonstrar por quais vias e destacar seus índices.
Por ocasião do I Encontro da Rede TyA-Brasil em novembro de 2014 em Belo Horizonte, Jésus Santiago levantou a hipótese de que a toxicomania verdadeira seria um paradigma da psicose ordinária. Deste modo, entrecruza estes dois sintagmas, já que em ambos casos não se trata de categorias clínicas nem de conceitos elaborados que se fecham em um diagnóstico de determinado tipo. Em tanto sintagma se trata de um conjunto de elementos contíguos que suportam uma função em torno de um núcleo.
O que me parece mais interessante desta hipótese sobre o par de sintagmas é a presença de um novo paradigma que implica em uma clínica das soluções já encontradas, dos arranjos que permitem a satisfação e conduzem ao gozo. Por outro lado, isto exige uma restrição do campo das toxicomanias e uma extensão do campo da psicose; ao mesmo tempo que nos abre a porta para a busca de novos índices que nos orientem na direção do tratamento, já que uma droga pode ter tantas funções como os usos que alguém lhe encontre, segundo seu modo de gozar.
Este novo paradigma nos apresenta uma clínica elástica como observa Enrique Acuña (5), com a possibilidade de encontrar uma psicose onde não a achávamos anteriormente, e onde se apresenta cada vez mais este entrecruzamento entre as adições e as psicoses.
Notas:
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Laurent, Eric: “El psicoanalista, el ámbito de las instituciones de salud mental y sus reglas” en Psicoanálisis y salud mental. Tres haches, Bs. As, 2000.