A toxicomania, nos dias de hoje, dissemina-se, prolifera-se e torna-se adição. Ao assumir as roupagens da drogadição, a toxicomania torna-se emblemática do que vem a ser o sintoma em nossa época. O fenômeno toxicomaníaco típico do século passado, em que se destacava a dependência de uma substância, cada vez mais se massifica, na medida que seus objetos multiplicam-se. Se antes, a dependência se definia por meio da ação de uma substância, nas chamadas novas adições, esta substância não se faz, necessariamente, presente. Objetos de consumo, amor, pornografia, video-game, fast-food e outros são suscetíveis de dar lugar às novas condutas aditivas. Os significantes “adicto, drogadição e fissura” se impõem no discurso corrente, indicando que não se trata mais de uma dependência a uma droga ilegal, mas da força da banalização das adições. Acredita-se, assim, que todo objeto pode se tornar adicto, na medida em que solicita a pulsão, tendo o poder de induzir à repetição de um ato que modificará a relação do sujeito com os prazeres do corpo.
Empuxo-às-adições
Contudo, essa espiral aditiva própria do mundo contemporâneo deve ser vista como uma tendência que decorre da promoção do gozo pelo mercado, que se opera às expensas dos ideais, das figuras paternas e de toda forma de autoridade do mestre moderno. Desde os anos 70, Lacan enuncia que o contemporâneo se caracteriza pela “ascensão ao zênite social do objeto dito pequeno (a)”, ela é inerente à lógica capitalista, que gera uma “produção extensiva, portanto insaciável, do mais-gozar”[1]. O fenômeno da drogadição se situa como consequência de uma transformação fundamental de nossa sociedade: se o discurso do mestre impunha ao sujeito reprimir, renunciar ou inibir o gozo – é a tese de Freud no Mal-estar da civilização –, a atualidade do discurso capitalista, e, associado a ele, a prática analítica, ao procurar responder ao mal-estar, conduz ao que Jacques-Alain Miller nomeou como “uma liberação do gozo”[2]. A ciência, de mãos dadas com o capitalismo, sempre portadora de novos objetos que povoam o mundo, contribui de maneira decisiva para essa configuração atual das novas adições.
Lacan qualifica os produtos da indústria de mais-gozar “en toc”, ou seja, objetos sem valor, descartáveis, ainda que sejam “objetos feitos para causar o desejo, pois é a ciência que os governa[3]. Constata-se, assim, que o mercado gera, a todo instante, objetos que bastam ser comprados para ter que ser substituídos por outros mais eficazes e atraentes. Por isso, pode-se caracterizar esse modo de gozo, que se depreende da aliança da ciência com o capitalismo, como “precário visto que ele se situa a partir do mais-gozar” [4] que apenas se enuncia em torno desses gadgets descartáveis. Diferentemente de um gozo vulnerável à incidência das leis da palavra, o mais-gozar particular das adições é, antes de tudo, efeito da produção discursiva do capitalismo, efeito de uma falta-a-gozar (manque-à-jouir), falta que, forçosamente, exige ser suprida.
Em última instância, o que caracteriza a apreensão do capitalismo como discurso é a Verwerfung, a rejeição da castração com relação a todos os campos do simbólico. Para Lacan, a consequência disto é que toda ordem de discurso aparentada ao capitalismo tende a jogar para escanteio o que se apresenta como a antípoda desta dimensão precária do gozo, ou seja, as coisas do amor e do desejo[5]. Fica evidente que a falta do gozo permeável à palavra incide sobre as “coisas do amor” e, mais ainda, essa falta não se inscreve como uma perda que mobiliza o desejo, subentendido pela fantasia. Exatamente no ponto da exigência em suprir esta falta-de-gozo, do gozo próprio ao corpo, um gozo poroso à palavra, que intervém o objeto droga, coisa que não acontece sem suscitar angústia. A toxicomania é, portanto, sintoma dessa Verwergung generalizada da castração – contrapartida inerente ao discurso capitalista, que, sob a forma de um imperativo – Goza! – constitui-se como um curto-circuito ao que, na economia libidinal, emerge como referentes desse gozo permeável à palavra: o amor e o desejo.
Sob o ponto de vista da precariedade própria a certos modos de gozo, esse empuxo-às-adições, fruto da contemporaneidade do discurso capitalista, acarreta consequências que vão muito além do alarde que faz o senso comum em torno de um suposto hedonismo e felicidade. Ao contrário, a atualização desse mais-gozar particular que culmina nos excessos das adições, não cessa de produzir efeitos que reforçam uma tendência civilizatória à pulsão de morte. Nos rastros desta tendência, pode-se situar o caráter emblemático toxicomania pelo fato de que se trata de um novo sintoma que se tece no horizonte autista e mortífero do gozo[6]. É preciso reconhecer que esse novo sintoma apenas pode ser tratado, clinicamente falando, à luz da reviravolta na leitura do ensino de Lacan, efetuada por Miller, por meio de uma concepção inovadora do parceiro-sintoma[7]. Essa aboragem clínica surge como um suplemento essencial, necessário à prática analítica e responde à insuficiência do que se institui, desde os anos cinquenta, como a função do Outro e, consequentemente, do significante do Nome-do-Pai nas estruturas clínicas freudianas clássicas.
Desordem no sentimento íntimo de vida
É sabido que tanto a histeria e a neurose obsessiva quanto as psicoses são concebidas pela relação do sujeito com o Outro, tomado como lugar do significante e pelo papel que nele desempenha o significante do Nome-do-Pai. Com a teoria do «parceiro-sintoma», o Outro deixa de ser apenas lugar do significante e, passa a se representar pelo corpo, definindo-se, assim, como meio de gozo. Ao tomar o Outro como meio de gozo, deve-se considerar, observa Miller, que não há gozo do corpo senão pelo significante e, ao mesmo tempo, há gozo do signifiante porque a significância está enraizada no gozo do corpo[8]. Sem dúvida alguma, para que se possa ter acesso ao funcionamento desses novos sintomas – toxicomania, bulimia, anorexia – faz-se necessário admitir a conexão estreita entre o gozo do corpo e o gozo do significante. Em outros termos, é por meio da presença decisiva do gozo do corpo que se fabricam esses novos sintomas, sabendo que não há para o ser falante um gozo anterior ao significante. Importa salientar que, sob a ótica da psicanálise, o tratamento do corpo em que se manifesta a relação desregrada com droga se faz com um corpo que fala por intermédio de seus sintomas.
Esse destaque conferido ao corpo não implica, portanto, que se trate o corpo que goza do toxicômano diretamente pelo corpo. Com efeito, considera-se o desregramento na relação com a droga, como depositária da função do Outro, ainda que a função significante, neste último, esteja preferencialmente a serviço do gozo. Por esta razão, nestas novas formas de sintoma, se o significante torna-se meio de gozo, o corpo de que se trata é sempre o corpo falante. Isto acarreta uma complexificação e conversão de perspectiva do que se encontra como fundamento de elaboração psicanalítica das estruturas clínicas das neuroses e das psicoses, cujo ápice é a emergência, como se verá mais adiante, das chamadas psicoses ordinárias. Vale dizer que a inscrição do Outro nos novos sintomas não segue à risca a separação estanque entre o recalque, que corresponde ao campo das neuroses, e a forclusão, que corresponde ao campo das psicoses. O enfoque que privilegia a presença da simbolização do Nome-do-Pai em um dos campos e sua ausência em outro não é suficiente para dar conta do fenômeno da toxicomania. A hipótese clínica que se propõe é a de que uma tal simbolização do Nome-do-Pai possa estar presente, ainda que seus efeitos sejam incapazes de agir sobre a “desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida do sujeito[9]. Logo, quem será capaz de agir sobre essa desordem no sentimento de vida do sujeito ? No caso do toxicômano, certamente, a droga aparece como solução à essa desordem.
Evoca-se essa falha no sentimento de vida, porque esta se evidencia no que se designou antes como o horizonte mortífero e autístico do sintoma toxicomaníaco, cujo modo de gozo deixa transparecer uma exclusão do Outro. No fundo, essa exclusão do Outro é apenas aparente, pois, se o toxicômano goza a sós, com o parceiro-droga, isto não quer dizer que ele despreze o acesso ao Outro, ainda que seja sob a forma de um atalho, ou, mesmo de uma recusa. O uso metódico da droga de alguma forma singulariza o que se disse, antes, a propósito do corpo falante, pois é possível mostrar que o corpo do toxicômano se institui, para ele, enquanto Outro. Trata-se de um novo sintoma, na medida em que a toxicomania se constitui como exemplar de um gozo que, essencialmente, se produz no corpo do Um, sem que com isto o corpo do Outro esteja ausente. Em um certo sentido, o gozo é, nesse contexto clínico, sempre auto-erótico, sempre autístico, mas, ao mesmo tempo, é alo-erótico visto que também inclui o Outro sob a forma do parceiro-corpo.
Uma parceria cínica com gozo
Como apreender o modo em que se efetua essa inclusão atípica do Outro na toxicomania, concebida como expressão paradigmática do autismo do gozo, e suas desordens para com o sentimento de vida ? Uma primeira aproximação clínica do problema aparece com o que Miller denominou de gozo cínico[10], gozo que se extrai da postura ética do mestre cínico em recusar os semblantes ofertados pelo Outro. É, portanto, o mestre cínico antigo que torna possível entrever tal demonstração. Se o cínico não carrega nenhuma imagem racional do mundo, nenhuma concepção providencialista da natureza, é porque, além de rechaçar, ele é mestre em ironizar toda e qualquer forma de transcendência do Outro. Não considera que haja um mistério do mundo a ser atingido, nem que uma divindade tenha criado o universo para o homem. Se o mestre cínico age assim, não é porque esteja marcado por uma falta de coragem ou por um acesso de ceticismo que o levaria a renunciar a felicidade.
Ao contrário, ele visa, contra tudo e contra todos, à felicidade em um mundo em que os reveses infligidos pela Fortuna são moeda corrente, em que o homem não é apenas vítima das paixões inerentes à sua própria condição, mas também submetido às agressões de um ambiente que o aprisiona no que se designa como os valores da civilização. É somente por meio de uma ascese, de uma domesticação capaz de promover a apatia, a serenidade total, que o cínico acredita enfrentar a adversidade sem, contudo, experimentar o menor transtorno. A inspiração essencial que orienta essa tentativa de encurtar o acesso à apatia é, portanto, a renúncia das fontes de gozo da civilização, cujo princípio é a autarcia, ou seja, o fato de poder ser suficiente por si mesmo, condição sine qua non da felicidade, tal qual se buscava, na antiguidade, esse modo particular de personificação da figura do mestre.
Com o intuito de precisar a tese do curto-circuito infligido aos semblantes ofertados pelo Outro, convém retornar ao valor que Diógenes de Laércio confere ao ato masturbatório público, com que ambiciona evitar as mazelas provenientes do convívio com uma parceira sexual. De certa forma, pode-se dizer que o gesto contestador do cínico intervém no ponto exato em que se torna possível o encontro com o Outro sexo. Contudo, faz-se necessário evitar a idéia de que o gozo masturbatório está ao abrigo da relação com o Outro. O cínico, deve-se dizê-lo, vive como se o Outro não existisse. Com efeito, o gozo fálico lhe é suficiente em si mesmo. O ideal cínico da felicidade vem confirmar o axioma lacaniano de que não há felicidade a não ser a do falo. O cinismo representa uma maneira de se opor aos meios de gozo oferecidos pelo aparelho da civilização, por intermédio do acento conferido ao gozo fálico, concebido como o único que pode liberar a felicidade. Admitir que o falo é uma via para a felicidade é o próprio anátema lançado pelo cínico ao laço social, o que explica, em compensação, o interdito com que as leis da cidade atingem sua forma de gozo direto e imediato.
O atalho cínico da masturbação testemunha os obstáculos que o sexo masculino encontra para gozar do corpo da mulher. A masturbação cínica instaura-se pelo fato de que o homem goza exatamente do gozo do órgão. Pelo gozo fálico, Diógenes tenta responder à discordância fundamental existente, para o homem, entre seu corpo e o gozo. Sua esperança é a de poder atingir o um da relação sexual, pela via fálica. Lembre-se, a propósito, da máxima de Diógenes, proferida com uma lanterna na mão — “Procuro um homem”—, que marcaria sua ligação ao gozo fálico, já que este impede a superação do obstáculo que o Outro sexo encarna. Em suma, o cínico agarra-se à masturbação porque ele não pode gozar do corpo da mulher, na medida em que seu gozo sexual está marcado pelo ideal de constituir o um da relação sexual.
Toxicomania e ruptura fálica
E no mundo contemporâneo … ? Existiriam, também, formas distintas de manifestações desse atalho cínico para o enfretamento do mal-estar do desejo ? Se elas existem … é bem provável que não possuam mais o valor ético que orienta a vida rumo à virtude e à autarcia, mas, sim, o reflexo das expressões sintomáticas de uma existência que se quer desmunida do Outro. A toxicomania aparece, portanto, como um sintoma que se exprime pela obtenção compulsiva de um gozo monótono, repetitivo, sem adiamento, ou seja, ele visa a uma satisfação quase sempre fabricada, de forma direta, no circuito fechado entre o consumidor e o produto.
Esse caráter artificial de fabricação da satisfação, confundida com um gozo monótono obtido nesse circuito do fechado do corpo e da droga e, sobretudo, a recusa dos semblantes do Outro remete à concepção da toxicomania como um tipo clínico que se traduz pela ruptura da função fálica. Por isso, é preciso fazer uma distinção essencial entre o apego do cínico à masturbação e o do toxicômano à satisfação tóxica. Se ambos coincidem no modo de inclusão do Outro, se convergem no rechaço dos semblantes da civilização, eles divergem no tocante ao gozo fálico. O cínico conforma-se com o gozo auto-erótico masturbatório e o valor fálico que se deduz desta estratégia em obter alguma sintonia entre o gozo e o corpo.
O toxicômano, em sua busca compulsiva de uma satisfação artificial e fabricada, dá sinais de que há falhas no dispostivo fálico, dispositivo que favorece o funcionamento possível do gozo necessário ao ser falante. Sob esse ponto de vista, o toxicômano não é o cínico, na medida em que reage, de modo distinto, ao casamento que o ser falante é levado a fazer com o falo. Justamente, o toxicômano é aquele que não consente com o casamento com o gozo fálico e, portanto, não o toma como uma saída viável porque sua fixação reside no real que envolve o órgão peniano. Para o cínico, ao contrário, não importa se o gozo fálico não convém à relação sexual, pois, ainda assim, ele se mostra apegado a ele. O toxicômano, por sua vez, é um contestador do falo e do gozo que se depreende dele ou do gozo de que se necessita. Chama a atenção como ele se interpõe a esse necessário do gozo que, como diz Lacan, apesar de ser um “gozo que não convém – non decet – à relação sexual, não há outro, se houvesse outro”[11]
O alcance clínico da visão lacaniana da toxicomania é tomar a droga como um objeto que busca suprir a falha da função fálica, considerando o seu papel viabilizar um gozo que mantenha alguma afinidade com a palavra. De outro modo, a presença insistente e compulsiva da droga denota o impasse do sujeito com relação ao gozo que convém, ou seja, o gozo pulsional que, sob o efeito da incidência da castração, encontra seus objetos, que se constituem como Ersatz, que velam e, ao mesmo tempo, desvelam a castração. O essencial da definição da droga que, em 1975, promove Lacan, é a tese de que sua prática metódica exprime as dificuldades que o toxicômano encontra em ser fiel ao casamento, que todo ser falante contrai, um dia, com o parceiro-falo. Por conseguinte, sua definição da droga se enuncia, literalmente, assim : “…é porque falei de casamento que falo disso; tudo o que permite escapar a esse casamento é evidentemente benvindo, daí o sucesso da droga, por exemplo; não há nenhuma outra definição da droga senão essa: é o que permite romper o casamento com o faz-xixi[Wiwimacher], ou seja, com o seu pênis.. No fundo, o que se apreende como específico do ato toxicomaníaco é a ruptura fundamental com o gozo decorrente dessa parceria para todo sujeito pois, é ela que fomenta o mais-gozar que convém. Observa-se, portanto, que essa definição aparece sob uma consideração, em que o casamento do ser falante com o falo, ou, mesmo, do gozo que dele resulta é rechaçado em nome de sua forte ligação com o gozo de sentido que incide sobre o órgão peniano.
Para manusear na clínica uma tal definição, deve-se tomar a droga como um fator de separação do casamento com o pênis e, não, com o falo. Ou seja, o toxicômano é um sujeito que permanece casado com com o gozo de sentido que gravita em torno do pênis em razão de que não se contraiu um laço possível desse sujeito com o falo. É preciso, portanto, não confundir o falo com o órgão peniano e, mais ainda, com qualquer representação imaginária ou idéia de que seria naturalmente um privilégio masculino. Enquanto função, o falo é um operador, um significante do gozo, significante destinado a designar em seu conjunto, os efeitos do gozo sobre o corpo. Trata-se de um significante assemântico, um signficante que não significa nada e apenas como encarnação desse nada que pode operar favoravelmente no momento da inciação sexual, no momento que o sujeito se depara com o mistério do Outro sexo.
Em O despertar da primavera, Lacan propõe que a iniciação sexual é mais favorável à vida, quando, levantado o véu, mostra-se nada[12]. Concebe-se esse nada como uma contrapartida do que irrompe, na adolescência, enquanto índice da viabilização do gozo fálico, ou seja, do gozo que se articula com o saber, com a palavra. Se o toxicômano é marcado pela ruptura fálica que se exprime na sua dificuldade em lidar com o gozo do corpo é porque, em função de seu apego ao gozo do sentido em torno do “pauzinho”, esse nada não teve lugar. A ruputura fálica equivale, assim, ao excesso de sentido que se produz no momento do encontro com o Outro sexo, um excesso pertubador à vida sexual, obstruindo ao que deveria apresentar-se como enigmático e sem sentido no gozo sexual.
Caráter epistêmico psicose ordinária
Assinala-se ainda que a clínica da ruptura fálica presente, nos fenômenos do uso toxicomaníaco da droga, não se deduzem diretamente da forclusão do Nome-do-Pai, mesmo porque se assim o fosse poderíamos estar diante de fenômenos típicos das psicoses, a saber: o delírio e a alucinação. É possivel dizer que a ruptura fálica emana da própria lógica de funcionamento do gozo que, por razões que remetem ao impacto contingente do significante no corpo, é vedado ao sujeito, o gozo que convém à inexistência da relação sexual. A tese da ruptura fálica como fator dominante das toxicomanias, exemplifica a inversão na ordem dos fatores própria da atualidade clínica, ou seja, não se pensa mais o furo na significação fálica apenas como consequência do furo do Nome-do-Pai.
Ao contrário, o Nome-do-Pai torna-se um predicado do modo como o sintoma e a função fálica organizam e ordenam o gozo para o sujeito. Como explicita Miller, o Nome-do-Pai deixa de ser um nome-próprio de um elemento particular chamado Nome-do-Pai. É o que se apresenta por meio da pergunta: o sujeito tem o Nome-do-Pai ou há forclusão do Nome-do-Pai. Em nossa época, o Nome-do-Pai não é mais um nome, mas o fato de ser nomeado, de ser atribuído a ele uma função, ou como afirma Lacan, ser nomeado para”[13] Em suma, o Nome-do-Pai não é mais um nome-próprio e torna-se, segundo definição da lógica simbólica, um predicado relativo ao furo da significação fálica.
NP (X) ––> X=ruptura fálica
A meu ver, essa formulação aproxima o novo sintoma, característico da toxicomania, ao campo das chamadas psicoses ordinárias, no sentido de que a satisfação obtida com a droga, bem como, outras modalidade de um fazer com o corpo, como é o caso das tatuagens, podem funcionar como um “substituto substituido”[14]. Se o Nome-do-Pai é um substituto ao desejo da mãe, pois, impõe sua ordem ao gozo da mãe, a droga pode aparecer como um “substituto-substituido”. Em outros termos, a droga pode ser um Nome-do-Pai na relação que o sujeito tem com seu corpo. Dizer que essas técnicas de corpo como a droga ou a tatuagem podem ser um “substituto” do Nome-do-Pai é um maneira de traduzir o que vem a ser o Nome-do-Pai como predicado. O que aparece como um método de curto-circuito da sexualidade, inerente à satisfação tóxica é, muito mais, valendo-se dos termos de Miller, um “fazer-crer compensatório”[15] (compensatory-make believe) do Nome-do-Pai, no sentido que torna possível alguma solução às desordens do gozo na vida de um toxicômano. Desde essa clínica do “fazer-crer compensatório” valoriza-se a continuidade entre os territórios da neurose e psicose, enfatiza-se aquilo que os faz contíguos, como dois modos de responder a um mesmo real, pois se trata, sob esse ponto de vista, não de estabelecer fronteiras senão de constatar enodamentos, grampeamentos, desconexões desatamentos entre fios que estão em continuidade.
Nesse sentido, quando se refire aqui à psicose ordinária não é para equacionar a querela diagnóstica que, historicamente, abateu sobre a toxicomania. Como se sabe, o seu enfoque clínico já esteve sob os auspícios dos estados melancólicos e maníacos; ou de uma psicose renomeada sob o termo impreciso de psicopatia; ou de uma perversão transformada pela época, isto é, uma perversão moderna; de uma neurose obsessiva atualizada por uma releitura da presença nela do masoquismo e, principalmente, os estados narcísicos e límitrofes ou boderlines. Já se tentou, inclusive, fazer dela um modalidade própria de discurso. Enfim, não se trata de tomar a psicose ordinária como uma categoria clínica objetivável que eliminasse o lado enigmático e obscuro que pesa sobre esse tipo de sintoma. Trata-se de uma categoria, diz Miller, mais epistêmica do que diagnóstica, e, portanto, concerne a nossa maneira de conhecer a presença da ruptura fálica na prática toxicomaníaca com a droga. Ela interessa ao nosso fazer clínico cotidiano e alimenta nossa possibilidade de apreender algo do sujeito toxicômano em tratamento. Digamos que a psicose ordinária é o único modo de verificar o fato fundamental da técnica de corpo com a droga que apredemos a cravar no cerne do sintoma toxicomaníaco; o único modo de por a prova do real as soluções compensatórias que se depreendem da ruptura fálica, em suma; de confrotar o real que não cessa de se escrever em cada caso que, no fundo, confunde-se com a propría estrutura da prática analítica, estrutura que se põe a luz do dia no fenômeno da transferência.