Qual seria a loucura de Ariano Suassuna?
Tem a loucura mansa e a loucura varrida, todo mundo sabe disso. Mas, e a de Ariano? Se fosse vivo, bem que valeria perguntar qual seria a sua.
Inspirou e dirigiu o Movimento Armorial que ganhou a cena cultural, com a proposta de uma arte brasileira erudita a partir das raízes populares do Nordeste. Dessa forma, tratou dos temas humanos mais universais, com a leveza e a simplicidade da comunicação que lhe eram próprias, ao alcance de todos e de qualquer um. Suas obras se deixaram apresentar nas praças e nos picadeiros, em meio a recitações de cordéis e apresentações dos teatros de mamulengos. Ariano trouxe à cena erudita os tipos e expressões mais fortes da cultura nordestina, desconhecidos até então no resto do país.
Daí um dos traços de sua loucura: a forma radical com que pretendia excomungar qualquer expressão de cultura que entendesse como estranha aos cânones do erudito popular. Aí, jogava o peso de seu prestígio contra pessoas e fatos inovadores, como fez com Chico Science. Então era pesado e birrento. Ariano nunca admitiu qualidade ao Movimento Mangue Beat que se inspirou na música soul, no funk, no hip hop e teve influência marcante na renovação da cena musical pernambucana. Dizia que Chico Science errava já pelo nome, que deveria ser Chico Ciência…
Era, de natural, sujeito leve, alegre, bem-humorado e de acesso fácil. Porém, eis outro traço de sua loucura: homem público, convidado para palestras em ambientes muito formais, deixara há muito de usar terno e gravata. Sua roupa, no talhe sertanejo do brim de mangas compridas, era feita por antiga costureira, a quem encomendou o fardão para a posse na Academia Brasileira de Letras.
Quando Secretário de Cultura de Pernambuco, nos idos de 1990, período de muita restrição orçamentária, fez comigo, então responsável pelas finanças do Estado, um trato inusual. Montou uma pequena trupe de artistas e poetas e, apenas com um estandarte armorial, saiu pelo interior do Estado. Chegava a uma praça e começava um espetáculo. Tocavam, declamavam e a praça se enchia. Um espetáculo sem estrutura, sem gastos de produção, a custo mínimo, que levou cultura e animação pelo Estado a fora. Essa teria sido a semente das aulas-espetáculo com que ganhou fama, algum tempo depois. Certamente uma ideia muito louca.
Ariano, sem abrir mão de um estilo muito peculiar, deliciava-se com o que fazia e com a vida em geral e trabalhou com entusiasmo até as vésperas do AVC que lhe tirou a vida, ao findar de uma tarde de julho de 2014, aos oitenta e sete anos.
No discurso de posse da Academia, disse ter sido, por toda a vida, o menino que, após o assassinato do pai, tentava, com o que fazia e escrevia, protestar contra sua morte e recuperar sua imagem. Assim, sua vida testemunhou o exercício bem-sucedido de fazer o traço mortífero da perda do pai conceder ao desejo de fruição da vida. Com certeza, a literatura lhe serviu para prover os meios com que pôde enfrentar a dura e fascinante tarefa de viver: os recursos do riso e do sonho. Mestre amoroso, eternizou seu amor por Zélia, com quem viveu por quase sessenta anos, no poema de rara beleza “A mulher e o reino” e alcançou com brilho a dignidade apontada por Lacan de ser o parceiro da fascinação de uma mulher.
Em sua memória, cabe festejar a loucura da vida.